sexta-feira, dezembro 21, 2012

licença para matar

(...)

Do outro lado da cama, ele consegue adivinhar-lhe o olhar cansado, por detrás das pálpebras fechadas. Na respiração constante que lhe aumenta o decote num ritmo lento, ele antecipa as lágrimas que lhes servirão de pequeno almoço. E espera.

(Há um sapato negro, mais fundo que a escuridão que lhes invade o quarto, esquecido no chão)

Naquele momento, dentro de tanto silêncio, por baixo da roupa que ela se esqueceu tirar, ele sabe que aquele corpo se prepara, com um repouso derradeiro, para se afastar irreversivelmente do seu. E assim, em vez de dormir, acaricia com os olhos todas as curvas, todos os cantos menos óbvios daquele corpo que, a escassos centímetros do seu, está já como que longe. Como que perdido.

Daquele lado do escuro da cama prevê com exactidão matemática o futuro: do fundo do tempo que está para chegar, na calada da noite, chegam homens para lhe explicar com detalhes pornográficos como usarão aquele corpo que nunca foi verdadeiramente seu.

E, naquele momento, não precisa de espelho para saber que, ao romper da aurora, acordará sozinho com o  olhar sanguinário de quem está irremediavelmente pronto para perder. Pronto para matar.

(...)

segunda feira, ao cair da solidão

(...)

Do lado de fora da janela pareciam apenas dois vultos perdidos num café qualquer. Mas lá dentro não. Ele, relaxado na cadeira, numa pose de aparente descontracção, tentava como de costume disfarçar a insegurança que o invade cada vez que vê o rosto dela assim, inteiro, ocupar por completo a sala com o entusiasmo de quem encerra a importância do destino do mundo nos assuntos mais triviais.

Para ele tinha sido sempre assim. Partilham a solidão sincronizada com chá ou café, em bares mais ou menos sofisticados, e deixam nesses instantes, o resto do mundo desacontecer. 
Param sempre tarde demais. Esperam sempre até depois do fim porque juntos aprenderam a desconstruir o tempo. E, quando o sorriso dela parte a galope ao sabor de um relato banal qualquer, ele faz um esforço ignóbil para perceber como é que o resto do mundo não entrava em combustão instantânea perante a alegria incendiária com que ela tentava (em vão) esconder o coração.

Ao chegar a casa, nada faz sentido: os copos, as paredes, o silêncio. Estuda no espaço vazio que acompanha a sua ausência os motivos, a arquitectura por detrás das duas meias luas que edificavam aquele sorriso com detalhes de paraíso. Mas cada vez percebe menos. Apenas a suspeita de que aqueles encontros não são mais que o destino final de duas fugas perpendiculares, destinadas a encontrar-se ali, sempre ali, no epicentro da solidão.

quarta-feira, dezembro 19, 2012

(ou o mapa de outono para o regresso à solidão)

A dança insegura dos teus cabelos nos meus dias
tem um aroma cor de amêndoa,
um sabor ignorado à alegria
que nenhum de nós ousa sequer sonhar.

Há algo no teu rosto
um qualquer esboço primitivo
uma sugestão das primeiras primaveras
de um tempo tão puro
que já ninguém sabe imaginar.

Mas o teu olhar tem um sabor de avelãs
e promessas de paraíso,
como se os anjos se tivessem finalmente cansado de cantar,
e tivessem adormecido definitivamente no teu rosto distraído,
espalhados no teu sorriso escondido,
destinado à sedução infinita dos teus braços ondulantes
ao som destas ruas que habitamos desencontrados,
destas ruas que percorremos destinados um ao outro
rumo à destruição voluntária da pouca humanidade que nos resta.

Talvez tudo não passe de um sonho,
em que alguém te semeou,
espalhando na minha paranóia um vestígio cruel de esperança
que me puxa inexoravelmente para ti
e que desenha no abismo do teu encontro
a promessa de um futuro que cheira a amêndoa
um futuro que o teu passo distraído irá
(de certeza)
evitar.


segunda-feira, dezembro 17, 2012

tocata e fuga em natal menor

Tomas-me como um comprimido contra a solidão. Temos  um plano, separados, simples demais para se  realizar. Os sonhos mutilados escorrem sangue e esperança: é natal, a hora perfeita para embrulhar com alegria esta vontade incontrolável de morrer. O mapa que nos levou tantas vezes até ao fim arde agora na memória seca dos teus cabelos, à espera dos meus dedos amputados de qualquer ilusão, esticados em gestos de carinho,  nesta fuga a dois contra a solidão.

quinta-feira, dezembro 06, 2012

ants marching

os teus pés calçados
escondidos entre botas e meias,
protegidos contra a solidão,
são capazes de poemas
como fotografias do teu rosto descalço
que escondes tão longe do chão.

vejo as multidões que marcham,
identifico todos os pés
as botas, os sapatos, os buracos,
mas só os teus explodem e explicam de uma vez por todas o porquê intermitente do apocalipse definitivo que cabe no fundo seco de uma lágrima - as noites seguem o seu percurso titânico e, na dança desesperada dos desconhecidos, que se espalham pelas noites a prostituir sorrisos plastificados, identifico com precisão milimétrica a tua ausência, o ritmo atonal de passos alheios incapazes de se sincronizar com os meus -
que procuram em vão
entre ruas, estátuas, ou bares
(longe de todos os olhares)
um passo silencioso
(quase discreto,
quase descalço,)
que possa de facto imitar o teu;
que possa por momentos fazer de conta
que o teu sorriso no fundo se esconde
apenas com medo de encontrar o meu.

segunda-feira, novembro 26, 2012

quase nada

eu e tu não somos dois
somos mais.

uma soma atrapalhada
desligada
uma simbiose multiplicativa
auto-destrutiva.

duas linhas paralelas
quase sobrepostas
olhos nos olhos
a escassos espaços
eternamente à espera
de se cruzar

somos isto:
pouco
ou quase nada;
tentativa falhadas
um momento mágico
trágico de esperança
a repetir-se na memória
como um documentário de uma época distante,
tão antigo que quase não o conseguimos lembrar.

quinta-feira, novembro 22, 2012

poema catrineta

Tenho sempre um livro
de poemas
escondido no fundo da mochila
ou no bolso mais recôndito do casaco
seja ele qual for.

Um dia, ao passar junto à praia
percebi, num arrepio de pânico
a tristeza analfabeta
que habita o fundo do mar.

Sentei-me junto às ondas
e, com o cuidado do artesão
desesperado
arranquei do livro
o meu poema favorito.

Dobrei-o com cuidado
arquitecto orgulhoso
do primeiro poema caravela.

E agora
que quase não o vejo
lá ao fundo
ao oscilar nas ondas
frágil como o sol que ainda o ilumina a ele
e a mim não,
continuo indeciso
sem saber o que será melhor:
se ser resgatado por um veleiro qualquer
com sede de paraíso ou barcos de papel
se afundar-se e, com sorte,
ensinar aos peixes a poesia
que mora para lá das águas
e que pertence a qualquer lugar.

sábado, novembro 17, 2012

o teu silêncio

O meu silêncio
em forma de escudo
estilhaçado, despedaçado
cada vez que te vejo passar.

Evitar-te como o condenado evita
a morte: em vão.

Fujo-te e encontro-te,
e quando
finalmente te escapo
invades-me os sonhos
em cenários impossíveis:
as tuas mãos morenas, abertas
num gesto tão impossível
que me faz
acordar;
os teus lábios
nos meus
a recordar beijos,
a prometer alegrias...

Cada vez que me julgo a salvo
assaltas o desassossego
das minhas primaveras
com olhares à prova de bala
e gestos esquecidos
impermeáveis ao esquecimento
a recordar-nos pesadelos melhores.

em ti

Estou dentro de ti.
Procuro
no fundo de ti
um vestígio húmido
de esperança.

No teu abraço
o fim e o princípio da solidão
encontram-se.

Os teus olhos
negros,
fechados,
escondem de nós tudo
o que conhecemos:
o fim
o destino vazio de um orgasmo
simulado
que me deste de presente
no dia da tua partida
definitiva,
no aniversário do dia em que descobrimos
o quão fácil era para nós
acreditar na felicidade de faz de conta,
que nos ocupou um inverno inteiro
um inverno cansado
com estrelas cadentes
de desilusões,
e futuros luminosos
que nunca deixaste acontecer.

sexta-feira, novembro 16, 2012

detalhes de um outono vestido de sangue

As árvores sangram:
arco-íris escarlates vestem as árvores
secas, à espera
da nudez estéril de um novo  inverno.

É Outono:
um sol glaciar atravessa a cidade;
as pessoas sorriem pelas ruas,
passeiam à procura de todos os santos
ou de um amigo só.

A melancolia instala-se
de veludo;
traz detalhes de cinismo,
e explica aos corações isolados
que o natal é quando um homem quiser,
mas ninguém na verdade o quer.

O Outono (def.)estação de transição em que o sol de um verão esquecido se prostitui à verdade negra de um inverno prestes a chegar; época de mendigos e sem-abrigo, a celebrar na rua de falos e seios expostos os meses que antecedem o terror árctico da sua extinção  anunciada...

[...e em que os mais desafortunados choram sobre cadáveres despidos o fim definitivo da paixão balnear, destino árido de todos aqueles que não se podem dar ao luxo  de morrer à fome.]

segunda-feira, novembro 12, 2012

assim

Um amor assim,
lento,
a chegar devagar,
sem pressas
na certeza típica da eternidade.

Os teus olhos,
assim,
como amêndoas impossíveis
a resistir às estações
e ao sangue;
a explicar-me sem gestos
que o mundo pode mesmo não ter fim.

O teu corpo
como o testamento mais antigo
como a beleza definida
ainda antes da criação,

A tua presença
e a tua ausência
a coincidirem no meu coração,
a pintar esperanças
com aguarelas invisíveis
num código secreto
que tento em vão decifrar.

sábado, novembro 03, 2012

deo ignoto

Ignoro-te.

(o teu olhar como a ameaça atómica, espalha o terror pelo sono sem abrigo dos abandonados)

Esta noite tem um disfarce de veneno especial. O céu, como uma catedral de estrelas, espalha-nos sobre as almas fés impossíveis, armas apontadas ao epicentro da ilusão que invade a nossa embriaguez imaculada. 

Fecho os olhos. Abandono-te, na certeza de ignorares o meu nome,  o meu rosto, o meu cheiro.

Fujo de nós. As ruas vomitadas emprestam-me um abrigo provisório, um porto seguro, distante do teu sorriso encantado, apontado à minha perdição.  Respiro fundo. Arranco do peito a indiferença instantânea com que me tentaste em vão crucificar.  Não há sangue.  As ruas continuam as mesmas: os mesmo lugares, as mesmas casas, os mesmo bares, os mesmo olhares.

Estamos exaustos 
(ausentes um do outro)

Não te conhecer foi a melhor coisa que me podia ter acontecido.

terça-feira, outubro 23, 2012

Acid Rain

Cais na folha de papel
como uma gota.

Aos poucos, espalhas-te
constróis as linhas que edificam
a tua dor
como uma seta
(envenenada)
apontada à minha culpa
(definitiva.)

Existimos juntos nestas linhas como no ódio
de quem evita saber amar.

Os bocados de letras que se escapam
escorrem sangue
ressequido
bocados de lixo
ou memória;
Pedaços mortos, nossos,
em perpétua decomposição.

Não nos olhamos.

A transparência do teu rosto.
O meu olhar invisível.
As muralhas de gesso que nos protegem o coração.

O nosso cadáver disfarçado de vida
pronto a renascer com o ódio,
totalmente equipado,
pronto para uma vida melhor.


A Summer Night's Dream

Era Verão
e tu deslizavas pelas estrelas como um cometa
o sorriso disfarçado de primavera,
tão rápida que podias nunca ter acontecido.

O teu rosto ameaçava a noite de paraíso
e a magia intermitente do teu encanto armadilhou-me irremediavelmente a memória.
(Perdido na embriaguez das palavras disparadas por acaso
numa fuga desesperada à solidão
que o sol ergue com a aurora 
como um estandarte, 
em guerra aberta contra a esperança.)

Mas, 
ao cair da noite,
a memória do teu rosto espalha-se no por do sol
e as praias que nos aguardam
num futuro distante
desenham no horizonte o contorno dos teus lábios
feitos à medida das promessas que o teu decote desconstrói
a destruir futuros impossíveis de acontecer.

Em tardes como esta,
o céu sugere o teu nome
como o caminho para felicidades
tão reais como os sonhos que me invadem
a noite, cheios de um verão infinito
esticado até aos confins do acordar apocalíptico de uma manhã qualquer
vulgar, convalescente das madrugadas em que decidiste,
distraída,
fazer repousar a fantasia dos teus cabelos,
ainda  que por breves segundos
ainda que em forma de ilusão,
ainda que imaginada apenas
no ondular inconsciente da minha solidão.

O sol põe-se uma vez mais.

Levanto os olhos para o sol e,
ao perceber-te tão longe,
tão impossível
não me resta senão sorrir.

terça-feira, outubro 02, 2012

A Revolução dos Renegados

De madrugada,
em qualquer cidade
sai à rua
o exército dos inconformados:

Vendedores de fantasias ambulantes,
armados até aos dentes
com espingardas fluorescentes;

Homens do lixo a carregar sacos cheios
de pólvora molhada em melancolia.

Soldados sem abrigo
a cerrar fileiras anarquistas à porta das igrejas desertas;

Legiões mercenárias de bêbados profissionais
a bater as ruas na espera incessante
dum sinal do inimigo invisível:

Prostitutas armadas com batôns e lâminas
de sonhos estilhaçados,
guardam a retaguarda
com convites armadilhados contra a solidão;

E, à sua frente

o grande líder
e o seu olhar amaldiçoado
pela esperança.

Dos seus lábios escorre sangue negro
em forma de verso.

Nas suas mãos, os ossos
partidos de todos os poemas
que ousaram invadir-lhes a noite infinita.

Aos seus ombros
o peso
da humanidade escondida
dos desalinhados.

Aos seus pés
os destroços das promessas
vazias dos habitantes lunares
do sol do meio dia.

Nas suas  costas,
os castigos marcados
dos bandidos, dos psicopatas,
os regicidas,
dos alienados.

Nas suas veias
a esperança revolucionária
abafada em álcool
e desencanto.

E no seu peito.
Ah, no seu peito!
o incêndio final
a chama absoluta
o punho imparável
de quem acredita por obrigação
na esperança roubada
nos sonhos exterminados
no futuro proibido dos renegados



[O dia do juízo final
aproxima-se.]



O exército aponta canhões
carregados de bombas
e ideias
aos  bastiões de mármore
dos conformados.

Não são feitos prisioneiros.
A revolução é definitiva,
a vontade
inabalável.

Em todos os bairros
a cidade arde.

O novo poder abole a covardia
subsidia as drogas
incita ao sexo imparável,
promove a líbido decisiva da liberdade.


Os impostos sobre os sonhos
são declarados ilegais
e uma nova constituição é redigida
em verso.


A oposição é abatida
a beijos, carinhos e flores.

Vendedores ambulantes distribuem novas fantasias
do alto dos seus novos carros
descapotáveis,
desfilando perpetuamente pelos sonhos reabertos
da cidade.

Os homens do lixo redistribuem esperanças,
que enchem como penas os seus sacos de plástico.

Os hotéis vazios são entregues aos sem abrigo
em sinal de agradecimento
e justiça.

Bêbados dançam pelos altares
das catedrais.

Putas funcionárias públicas
distribuem favores sexuais aos pensionistas
em troca de um soneto, uma cantiga
uma aquarela, ou companhia.


Da torre da igreja
o grande líder
vê a revolução instalada:
as flores, o sexo,
a música, o riso,
o tumulto embriagado da liberdade.

Do cima da torre
o poeta sorri de corda
ao pescoço,
deixando o peso do seu suicídio
fazer tocar  o sino, que
por fim,
anuncia a chegada definitiva
da felicidade.

Trova da noite que mata.


Não me resta senão escrever-te
na esperança que o próximo verso te mate; 
na esperança que estas linhas,
esta tinta,
esta noite,
descubram no escuro
um sinal do fim;
uma réstia de cor,
o esboço de um futuro
que possa ainda
acontecer.

Um futuro sem forma
preenchido pela tua ausência,
um tempo suspenso entre a chuva
e a certeza de não poderes existir mais
em mim
senão em forma de memória,
senão em forma de lage
plantada no cemitério
onde esta caneta te deixar repousar.

As flores que te escrevo
sangram
suicidam-se, enforcam-se
pelas pétalas.
Estão secas de pólen
desfazem-se em poeira e cinza
servem apenas como refúgio
dos insectos
contra a solidão.

Estes versos
anunciam a condenação,
a pena perpétua do teu sorriso
criminoso, 
incandescente,
exilado para sempre
do meu.

Não me resta mais nada.
Entrego-me à noite.
Lá fora, os lobos anunciaram três vezes a morte da aurora.
As ambulâncias em pânico procuram em vão um simal do sol.

A noite é eterna
e prepara-se para nunca mais
acabar.

Fecho os olhos.
Lá ao fundo
um fio de luz.
Um rasto sépia,
um desenho inacabado
talvez um dia novo
ou quem sabe,
talvez,
o futuro a amanhecer.

quinta-feira, setembro 27, 2012

Balada da Senhora que limpa

A Senhora da limpeza descansa.
Ao seu lado, uma vassoura suja, repousa também.

Juntas,  disfarçam memórias alheias, escondidas meticulosamente debaixo do tapete:
     copos desfeitos em sangue, pecados capitais;
     impressões digitais de presenças proíbidas.
     pegadas de fugas anunciadas;
     detritos perdidos de outra realidade qualquer;

Quando varre o chão, imagina mentiras entre as migalhas de pão, disfarçando as suas dores com as dores inventadas dos outros:
     traições, suicídios,
     fortunas em chamas,
     impérios destruídos,
     felicidades evitadas.

Mas ninguém a imagina a Ela,
rugas esculpidas a lixívia,
ossos distorcidos pelo tempo,
na tentativa incansável de esconder do mundo
     todas as mágoas,
     todo o lixo
     todas as vidas
     todos os vícios.

Ninguém imagina o que sofre a Empregada
porque foi feita para sofrer,
e imaginar lixo e lixívia,
por certo,
cheira mal.

E assimo mundo gira
sempre em seu redor,
escondendo a sua mágoa
de esfregona em punho
eternamente à espreita
de todos os crimes escondidos,
os passados,
e os que continuam sossegados
à espera de acontecer.

A Mulher-a-dias limpa.
Para os outros apaga:
     crimes passionais,
     doenças ilegais,
     paixões impossíveis,
     mortes invisíveis.

Porque quando a casa é limpa
o mundo começa de novo
e é tempo de a voltar a sujar
a vida toda,
outra vez.

sexta-feira, setembro 07, 2012

Todos os dias.

Dentro do meu quarto crio pássaros imaginários: ensino-lhes sinfonias de assobios, simulações de tornados que só acontecem no baú mágico destas quatro paredes.

Quando me perguntarem o que tenho lá dentro, digo que te tenho a ti: um poema disfarçado de primavera, encerrado no meu quarto para durar as eternidades que me puderes dispensar.

A presença subaquática das flores sugere cores frescas de selvas tão longe que, nem a fazer de conta, consigo imaginar.

Mas o teu riso a qualquer palavra minha serve de explicação inequívoca para qualquer enigma: o mistério da criação do arco íris em permanente reflexo nas ondas distraídas dos teus cabelos; o movimento aleatório das luas que preenchem o teu céu disfarçado de sorriso; as galáxias a reagir em erupções apocalípticas cada vez que passeias discreta pelas ruas de um planeta que ainda nenhum cientista ousou inventar.

Este papel não tem linhas.
O rumo perdido deste poema serve apenas como  testemunha implacável do quanto eu gosto de ti:

Todos os dias
(cada vez mais).
Todos os dias
(sempre demais).

quinta-feira, agosto 30, 2012

o diálogo da tempestade

Ela explicou-lhe o porquê da melancolia, e converteu-o de novo à solidão: uma solidão momentânea, um fio de orvalho gélido entornado no coração, a ameaçar durar para sempre.

Ele procurou-lhe no rosto uma pista para a felicidade, mas a chuva despejava nos olhares trémulos a condenação definitiva ao desalento estéril que cabe no fim de uma vida.

À sua volta, uma multidão de rostos mutilados de esperança celebrava o Carnaval fúnebre daquela união.

Quando se olharam de novo, no meio da tempestade, os seus braços dados abraçavam os relâmpagos incandescentes que teimavam esconder a todo custo a explosão derradeira que anuncia um novo final numa promessa descabida de esperança.

quarta-feira, agosto 22, 2012

o menino dos sete ofícios

Papá, quando for grande
quero ser jogador de futebol!
fintar as pessoas todas
e só para quando marcar um golo!

Mamã, quando eu crescer
vou ser bombeiro e apagar fogos sem parar!
vou ter um camião gigante, uma mangueira
e a terra vai deixar de queimar!

Avô, não sei se já te disse
mas o meu sonho é ser polícia!
vou prender os maus todos na prisão
e salvar as donzelas para o meu coração!

Avó, quando for crescido
quero ser um grande cantor
fazer músicas perfeitas
até todos saberem o meu nome de cor!

e quando eu aparecer nos filmes
e todas as actrizes aparecerem comigo,
vou ser um actor formidável
e o mundo inteiro vai ser meu amigo!

Mas se calhar o melhor é esperar
pois o meu destino é ser super-herói
ou então se os meu poderes não chegarem
posso sempre ser cowboy!

mas...
e se os sonhos não se realizam?
E se não posso ser nada afinal?
Se os livros são todos mentira
E a coca-cola inventou o natal?

Se calhar não tenho outro destino
que não seja a morte certa
e já que a esperança me falta
o melhor é ser poeta...

domingo, junho 10, 2012

a chuva, lá fora


Há chuva, lá fora.
Nas nossas mãos, réstias de lágrimas
que desenhamos por acidente cada vez que nos evitamos.

Enquanto a cidade se afoga,
a verdade começa vir à tona;
esgotos de memórias inundam as ruas
e o lixo acumulado no fundo da espera
toma finalmente a cor pálida da esperança desabitada
que se esconde no fundo de nós.

Somos isto:
um cemitério de sorrisos,
ou uma série de autocarros perdidos com destino à ilusão.

Eu continuo assim,
a afogar-me deliciado num poço de lembranças
enquanto esta cidade maldita chove inteira dentro de mim.

Porque no fundo é isto que nos resta:
a espera ansiosa pelo delúvio definitivo
que nos embrulhe entre as ruínas de luz e os vestígios de esperma contaminado,
e nos devolva de uma vez por todas ao esquecimento.

domingo, maio 20, 2012

A distância que nos separa
do último beijo
tem promessas escondidas pelo medo,
e um cheirinho doce a holocausto.

O milímetro que separa
os meus lábios dos teus
tem uma imensidão de memórias negras,
ácidas, a proibir a destruição
e o eclipse final da nossa união:

as tuas mãos nas minhas;
os desenhos de carinho assustado que continuamos a evitar. 
o teu cabelo no meu rosto, na redenção de um momento pronto a explodir.
as ideias fúnebres que envolvem os nossos olhares despedaçados.
as promessas de sangue e desilusão
cada vez que te deixo partir.
a certeza assassina do teu corpo
com outros corpos,
do teu olhar para sempre exilado
do meu.

Quando tudo acabar
sobrarão sonhos queimados,
corpos desfeitos e o medo
de que o fim possa nunca mais chegar.

quarta-feira, maio 16, 2012

#5

clear skies sing the promise of spring;
metal trash cans
hide the inevitable truth of the amputated teddy bear.

#4

Raindrops shower this morning's face;
jetlagged memories
carry dreams over to the other side of faith.

segunda-feira, maio 14, 2012

São os meus poemas
desenhados pelo teu rosto despido
espalhados pelo teu sorriso infinito
a terminar num beijo imaginado de saudade.

São os passos de dança dos teus cabelos
a preencher o espaço invisível que nos separa,
desenhados na nudez dos teus ombros descalços
a disfarçar a sedução da tua fuga à intimidade

É o brilho explosivo dos teus olhos
que me atrevessa até aquele lugar bem fundo
onde a esperança se esconde
e os sonhos têm contornos incertos de imortalidade.

É a tua pele
como a tentação suprema
como a promessa de uma paz sem pressas
como o sabor indisfarçável da felicidade.

São os teus lábios
a explicarem-me a violência da ternura
o suícidio voluntário da inocência
a colorir de certezas a cumplicidade.

E as tuas feridas graníticas, 
quase definitivas,
a afastar-me irremediavelmente do teu abraço,
e do teu cheiro impossível a eternidade.

Há, nos teus olhos, uma verdade incondicional.
(a promessa da fuga definitiva à solidão):
as esmeraldas escondidas no fundo do teu sorriso;
as ondas dos teus cabelos, infinitas,
definitivas como o fundo do mar;
o balançar do teu corpo, na sedução de quem
assume sem preconceito a possibilidade do fim do mundo,
mesmo quase a chegar;
a tua pele, estendida na minha
como o encontro de duas praias
no dia em que os oceanos se cansaram de existir.

O nosso destino, talvez: o fim
do mundo: cidades em chamas;
o holocausto vulcânico do nosso encontro final
a devolver o fim ao mundo
perdido há tempo demais.

Fantasia Verde (ou o Regresso à cidade Esmeralda)

As páginas que ligam Florença ao resto do mundo são verdes:
um verde que encerra em si um milhão de outras cores
que o resto do mundo ainda não soube inventar;
todas elas diferentes, todas elas verdes:

verde esperança e primavera;
verdes áridos a sugerir valas comuns para os sonhos dos condenados;
verdes cinza, espalhados sobre a terra como o nevoeiro definitivo que prepara a chegada da tempestade e o fim da esperança;
verdes sorriso, como desenhos de flor e saudade;
verdes musgo de casa abandonadas ao mistério original da decomposição;
verdes eléctricos, explosivos, a impor alegrias estridentes aos corpos amputados de esperança que se arrastam eternamente pela escuridão do asfalto e da noite;
verdes artificiais, pintados no meio dos outros, como tumores arquitectónicos, a atormentar as paisagens perfeitas demais para não serem destruídas;
verdes borboleta;
verde rio ou verde mar;
verde fogo, verde cinza: verde saudade;

Desfilam todos vestidos a rigor:
uma procissão interminável de cores
todas elas verdes.
E, por detrás de todas elas,
no fundo de todas as cores,
no fundo de todos os verdes,
o verde atómico dos teus olhos apontados aos meus
a explicar-me todas as cores,
a decifrar esta esperança irredutível
que continuo sem saber explicar.


Florença está mesmo a chegar. Um último olhar descobre o arco íris verde que antecede a cidade. E, à chegada, a sucessão de contentores onde os sonhos são enterrados, na escuridão, a salvo da esperança verde que ameaça destruir a qualquer momento todos os nossos projectos megalómanos de solidão.

Desastre Perfeito


Somos o desastre perfeito;
Coleccionamos  momentos impossíveis, e sonhos em que o tempo e o espaço se dobram numa vénia violenta de despedidas que fingimos nunca terem acontecido.
Lá em baixo a cidade disfarça-se de pomar, e os nossos lábios selam com esperança um momento que está sempre prestes a acabar.
Os nossos sorrisos brilham sincronizados, espelhos de felicidades desesperadas, a segurar na ponta dos dedos bocadinhos de esperança que se esticam até que o tempo se gaste, e a partida se imponha em desenhos de névoa e ameaças de saudade.

terça-feira, abril 03, 2012

     Tenho o teu reflexo tatuado nos olhos como uma assombração incandescente: a prova obsessiva de uma atracção descontrolada que espalha o teu sorriso em todas as coisas, em todos os rostos, em todos os lugares: os teus olhos negros de horror e primaveras nas garrafas de vodka vazias que povoam as noites que destruímos para fingir o esquecimento; os teus lábios desenhados pelo lixo espalhado meticulosamente pelos passeios sujos de todas as ruas em que disfarçamos gestos violentos de carinho, desejo e desespero; no olhar histérico dos sem abrigo uma sugestão explosiva do teu sorriso assassino, um rasto desumano dos relâmpagos que te iluminam o corpo quando te esqueces de esconder a felicidade.
     Talvez a paixão seja assim: suja, ácida, despedaçada. A fuga infrutífera à verdade suprema: o fim.
    Não nos resta nada. Nem o passado. Nem o direito à esperança. O divórcio da realidade espalha pelos dias a memória acabada do teu corpo, a imagem imortal da tua pele cicatrizada nos objectos mais insignificantes, nos lugares mais comuns.
    Não há mais nada. Mas há a esperança: ténue, ridícula, acabada. O prolongamento a conta-gotas  destes dias, iguais a todos os que passaram antes de aconteceres. 
     E há o tempo. O tempo infinito que nos separa do momento inevitável em que as máquinas se desligarão naturalmente, e a morte certa deixará de ser uma promessa de liberdade, para passar a ser o alívio infinito do regresso à solidão.

domingo, março 18, 2012

as estações do desassossego

Nas tuas costas há um país inteiro. Nos teus ombros, uma primavera escondida de sorrisos. Nas tuas mãos, fechadas, escondes os espinhos do outono para evitar a melancolia lenta do meu olhar abandonado. Nas tuas curvas, escondemos os escombros de uma história orfã de um final, mesmo que infeliz. E assim, o verão sucede ao inverno nas ruínas incandescentes da nossa memória; os nossos corpos, amputados um do outro, entregam-se na embriaguez sufocada da noite, a fingir felicidades-relâmpago no reflexo turvo de corpos anónimos, devidamente equipados para o desejo descontrolado de quem tenta desesperadamente esquecer-se do fim da esperança; de quem encontra em pernas alheias a promessa húmida de um instante polaróidico que os separa do regresso inevitável à solidão.

segunda-feira, março 05, 2012

detalhes de uma implosão iminente

Há, no meio de nós, um lugar sem nome, tempo ou espaço. Uma barreira invisível, carregada de impossíveis, feita de pesadelos em que o buraco negro onde o terror se esconde nos explode na cara em estilhaços de sangue, memórias e solidão.

Mas o meio de nós fica à distância escondida de um beijo e, à nossa volta, há um laço apertado de saudade, uma força centrífuga de ingenuidade, uma esperança venenosa condenada à imortalidade implacável dos nossos sorrisos.

sábado, fevereiro 11, 2012

O Regresso dos Homens-Deserto (ou a desconstrução da descrição do fim do mundo)

Como se a imagem fosse a reprodução de um livro, ou outro gerador de imaginações às prestações. Primeiro, uma rua deserta: uma placa explode do vazio, com o nome desenhado devagar: Rua dos Homens Desertos. De repente uma casa, mas não uma casa, apenas a dimensão, as linhas; um tamanho.
E de repente cores. Monocrónicas, sujas, mas paredes agora a preencher o espaço antes invisível que ficava para lá das dimensões decididas no momento.
E depois janelas. Uma porta de alumínio, pedaços de vidro a desaparecer de uma das janelas que afinal está partida. De repente o frio na casa, porque a porta afinal não fecha sequer, e há também um gemido, dos ferros que aos poucos ganham a ferrugem do abandono que ficara esquecido na descrição até agora. Agora um sufoco. Pó, em perpétuo movimento, eternamente perdido pela casa abandonada. Pelas divisões que surgem agora, porque até agora a casa era um cubo deserto. Uma sala, com sofás esqueletos de alimento para ratos e animais afins. Uma caldeira negra, não de cor, mas de fuligem. Quadros tortos, alguns teletransportados, da parede para o chão. Todos de repente partidos! Um relógio na parede, quase deitado, a escolher uma hora incerta, afinal definida, duas e um quarto, certo duas vezes por dia.
Um fim nasce agora à sala. Um corredo escuro em que se vislumbra um vidro que o pó proibe de ser espelho. Sombras a sugerir portas que da sala não podem ser mais que ideias semidefinidas do resto da casa que acaba, abruptamente, com a indicação de ruídos na rua...
Vozes afinal. Distintas, claras. Finas como areia. Um olhar para trás. Uma multidão de homens -deserto apontam os seus olhares de terra.A quem? A mim? À personagem? Momentos de dúvidas, e é já tarde demais. Jactos de esperma-areia num deserto orgásmico onde cemitérios de ideias sugerem a possibilidade de livros que a areia não me deixou escrever.

Detritos púrpura.
Compassos, intermitentes, raios de sol
nuvens, vento, agulhas e água injectada de sangue.
Sons, explosivos e inanimados.
Mortes. Memórias desconexas.
Um avô numa cadeira
um orgasmo imaginário lembrado ao pormenor
fantasias de aço, linhas desfeitas
verso recortados, como pedaços de carne
ideias assassinadas por palavras.
Serras e vinhos e medos
misturados. Veneno compósito para a morte
em ebulição. Um linha de guitarra
que de repete é a dor lancinante de um pesadelo de muitas vidas atrás.

O tempo dobra-se, sobrepõe-se.
O medo do rapaz de cabelos
destruídos, cheio de esperanças, encontra o sorriso
de um adulto convencido da solidão no
mesmo rosto, um rosto único, intemporal, em que
esperanças e brinquedos se espalham
de mãos dadas com o sorriso suicida de quem aprendeu enfim
a abraçar a solidão definitiva.

terça-feira, fevereiro 07, 2012

Para lá do vento
Por detrás do gelo
fica a saudade.

Entre as correntes de frio,
por cima do cume
da saudade, fica o esquecimento
glaciar instantâneo
pronto a derreter.

#3

Bloodied roots poison the flowers.
Monster sirens!
From the peak of the world we see the truth.

#2

Her memory painfully fades.
Roadblock:
steel cars flying against the wind.

#1

The water pipes broke
undecided...
snow flakes shower the hills.

quinta-feira, fevereiro 02, 2012

Talvez

Talvez não tenhamos muito tempo mais.
As ruas começam aos poucos a esquecer os nossos passos. Nos nossos degraus escondidos de esperança, uma névoa fina dissolve as memórias que não conseguimos ainda apagar.
Nos nossos corpos abandonados, o rasto sulfúrico dos lábios desenha a explicação inevitável deste fim, ou de um outro quase igual.
Lá fora, a cidade treme e explode, na tentativa vã de nos explicar como reagem os rostos em plena combustão.
Mas eu permaneço imóvel e tu, imagino, também. Porque escorregamos entre o bem e o mal, como sangue envenenado, e evitamos olhar para trás quando nos esquecemos de parar de cair. Porque aceitamos uma morada de abismos, destroços e esperanças amputadas, para um dia, alguns sorrisos, pedaços soltos de cumplicidades siamesas, e pouco mais.
Talvez não já não tenhamos tempo para olhar para trás, e perceber que os toques escondidos, e os sorrisos simulados, tinham escondidas dentro de si esperanças e promessas nuas,  demasiado puras para o apocalipse glaciar destes futuros que nos recusamos experimentar.
Talvez o medo tenha cortado os pulsos do tempo, e agora tudo o que nos resta é esperar que os minutos de sangue que faltam se esgotem, e o tempo decida voltar a começar.

quarta-feira, janeiro 18, 2012

os teus olhos, nos meus olhos,
como uma porta escondida
para um paraíso em que não sabemos acreditar.

os meus dedos, no teu rosto,
a acordar um sorriso perdido
de luas que te esqueceste de inventar.

os meus dedos
nos teus cabelos, os meus
lábio, nos teus ombros, a minha
respiração,
desligada,
nas tuas costas, o meu
coração,
suspenso,
à espera de acreditar de novo num dia melhor.