quinta-feira, setembro 27, 2012

Balada da Senhora que limpa

A Senhora da limpeza descansa.
Ao seu lado, uma vassoura suja, repousa também.

Juntas,  disfarçam memórias alheias, escondidas meticulosamente debaixo do tapete:
     copos desfeitos em sangue, pecados capitais;
     impressões digitais de presenças proíbidas.
     pegadas de fugas anunciadas;
     detritos perdidos de outra realidade qualquer;

Quando varre o chão, imagina mentiras entre as migalhas de pão, disfarçando as suas dores com as dores inventadas dos outros:
     traições, suicídios,
     fortunas em chamas,
     impérios destruídos,
     felicidades evitadas.

Mas ninguém a imagina a Ela,
rugas esculpidas a lixívia,
ossos distorcidos pelo tempo,
na tentativa incansável de esconder do mundo
     todas as mágoas,
     todo o lixo
     todas as vidas
     todos os vícios.

Ninguém imagina o que sofre a Empregada
porque foi feita para sofrer,
e imaginar lixo e lixívia,
por certo,
cheira mal.

E assimo mundo gira
sempre em seu redor,
escondendo a sua mágoa
de esfregona em punho
eternamente à espreita
de todos os crimes escondidos,
os passados,
e os que continuam sossegados
à espera de acontecer.

A Mulher-a-dias limpa.
Para os outros apaga:
     crimes passionais,
     doenças ilegais,
     paixões impossíveis,
     mortes invisíveis.

Porque quando a casa é limpa
o mundo começa de novo
e é tempo de a voltar a sujar
a vida toda,
outra vez.

sexta-feira, setembro 07, 2012

Todos os dias.

Dentro do meu quarto crio pássaros imaginários: ensino-lhes sinfonias de assobios, simulações de tornados que só acontecem no baú mágico destas quatro paredes.

Quando me perguntarem o que tenho lá dentro, digo que te tenho a ti: um poema disfarçado de primavera, encerrado no meu quarto para durar as eternidades que me puderes dispensar.

A presença subaquática das flores sugere cores frescas de selvas tão longe que, nem a fazer de conta, consigo imaginar.

Mas o teu riso a qualquer palavra minha serve de explicação inequívoca para qualquer enigma: o mistério da criação do arco íris em permanente reflexo nas ondas distraídas dos teus cabelos; o movimento aleatório das luas que preenchem o teu céu disfarçado de sorriso; as galáxias a reagir em erupções apocalípticas cada vez que passeias discreta pelas ruas de um planeta que ainda nenhum cientista ousou inventar.

Este papel não tem linhas.
O rumo perdido deste poema serve apenas como  testemunha implacável do quanto eu gosto de ti:

Todos os dias
(cada vez mais).
Todos os dias
(sempre demais).