terça-feira, dezembro 25, 2007

Putas

O momento em que passou por ela, naquele vestido sujo. O momento que lhe passou entre as pernas agitadas. O movimento crescente àquela angustiante languidez. Que lhe desceu aos músculos mais insignificantes que ele nunca ousara usar, naquela força animal com que a segurara. Com que a possuíra também, mas não tanto. Aquele olhar. Suplicante por alguém. O seu poder. A volúpia desvastante que ele deixara reinar. O pensamento de censura que arrastou imperdoavelmente para aquele lado do cérebro, aquele ângulo morto para onde ninguém consegue ver. Aquele que só pode ser desconfiado na fotografia que a memória constrói no futuro se o momento se der a lembrar. As pernas nervosas abertas contra a vontade que ela tão bem simulara. Desenhadas no chão, ampliadas por um candeeiro distante. O sentimento de magnitude que o atravessava a cada segundo que a sentia agradecer-lhe naquele olhar suplicante. O rugir cada vez mais próximo. O lamento. Tão suave. A desmoronar impérios. Não? Mas, tão triste… Só as putas olham assim!...

sábado, novembro 03, 2007

Diluições

Nunca o tinha visto por cá…

Pois.

É de cá.

Moro no quarto andar.

Há muito?

Há uns anos.

Nunca o tinha visto cá.

Pois.

E o que traz hoje cá?

Estou praqui a ver se morro.


Traga-me 6 shots de vodka por favor.
Bebe-os de seguida.

Foda-se.
O barman olha-o curioso.

Merda. Já percebo porque é que os polacos fazem isto na maior. Devem ser tristes de nascença. Filhos da puta.

Enquanto sobe as escadas deixa-o o sangue diluído embatê-lo contra as paredes, sem reacção, sem dor. Estende-se contra a porta à espera da vontade de abrir a porta.

Acorda e sabe que devia ter ficado a dormir para sempre. Água. Que peso. Quer chegar à mesa e tomar os comprimidos todos de uma vez até a cabeça voltar ao peso habitual. E água. Muita água. Foda-se. Que pena não ter morrido. Ou não ter bebido. De qualquer modo estaria melhor. Merda. Tenho de deixar de beber outra vez.

Uma sexta-feira qualquer

Não sei porque te escrevo menos. Porque acho que tu tens de saber tudo, mas não tens. Vergonha? Nunca percebo bem como funciono cá dentro. Vergonha de te dizer que não mudo os lençóis para dormir na ilusão do teu cheiro. Que tento não pensar em ti porque quando o faço o meu coração quer rebentar. E a minha vida é isto. Autocarros de sonâmbulos feios. Pedintes sem infortúnio de grandeza suficiente para serem ajudados. Rostos todos iguais, como rebanhos para o matadouro. A marchar a passo ritmado para a guilhotina. Mais um bilhete para me tentar esquecer. Viagens infinitas, hoje ainda mais. O sono, os livros, a fugirem de mim como da morte. Vejo o Douro e já nem forças me sobram para sorrir.

segunda-feira, agosto 20, 2007

The Gift

17.08.2001. A chuva aumentava de intensidade. Todos fugiam, o meu primo cansado de se refugiar debaixo de um plástico que de improviso servia de cúpula a um amor quase proibido, o resto da malta completamente encharcada e farta daquilo. E íamos mesmo desertar quando eles entraram em palco. Além do primeiro single OK, do you want something simple?, cujo refrão me ficou no ouvido como a todos os portugueses naquele verão, especialmente a outro primo meu que, na altura, com uns 8 anos, entoava em perfeito inglês, Ok, tchiqui tchiqui tchiqui tchiqui. Não me lembro como abrirarm o concerto, provavelmente, Fabric. Mas algum tempo depois veio Me, myself and I e eu entreguei-me naquela chuva e na noite ao som que me chegava directamente ao fundo da alma. Sem mais nem menos. O adolescente que confundia olhares com amor, simpatia com desejo, ali, completamente nu, encharcado, junto a uma centenas de fiéis que se recusavam a arredar pé. Eles esperaram por mim pacientemente, não sei se conscientes da importância daquele momento para mim. Depois lá me arrastaram dali para fora, privando-me de um dia mais tarde poder dizer que aguentei corajosamente até ao fim aquela chuva abençoada. Dois dias depois, pedi uma cópia de Film a um amigo e parti para o fim das férias, e foi ao som daquele cd que tudo o que se passou naquele verão e muito mais foi digerido. Como um bom vinho requer uma boa refeição, uma boa mágoa merece uma boa banda sonora.

Depois de Film, AM/FM, ouvido aos poucos, porque um cd duplo demora algum tempo a ser assimilado. Fabuloso. Um cd arriscado. Uma ousadia à Billy Corgan. Diferente, mas eficaz.

Tudo isto me surgiu depois da última actuação a que assisti da banda de Óbidos, que agora começa a ser do mundo também. Se o carácter intimista me seduziu nos primeiros tempos, a celebração em que se torna cada um dos seus concertos, a dança, a festa, deixam-me agora totalmente deslumbrado. Já não há limites para eles. Nuno Gonçalves não é só um compositor dotado, mas uma peça fundamental no espectáculo que sãos os The Gift em palco. Sónia continua doce, tão simpática que chega a ser difícil engolir tanta simpatia de uma só vez, não só nas palavras, mas também na voz. Os The Gift deixaram de ser uma banda. Os The Gift são um estado de alma.

domingo, junho 24, 2007

Auschwitz

Auschwitz é um cemitério de almas que nunca vão morrer, povoado de sorrisos, efémeros como flocos de neve numa tarde de verão...

sexta-feira, abril 27, 2007

A casa parece cada vez mais escura. Não entendia porquê. Quantas mais luzes, maiores as sombras. E só via mãos. Será que se tinha despedido dele? Decididamente murmurara algo a esse respeito, mas tinha uma vaga recordação de ouvir algo como um "nem pensar" alegre, mas era complicado ouvir com duas mãos assim, enroladas no pescoço como o beijo de uma serpente, a tapar-lhe os ouvidos, e a boca, e o nariz, a amarrotar-lhe a solidão no cesto dos papéis quase esquecido. Mas também, porque raio o tinha ele convidado? Cinquenta anos não são muitos mais que quarenta e nove, e não se lembrava de qualquer outro festejo que fosse desde que o conhecera há tantos anos atrás quando apenas sonhavam baixinho para ninguém ouvir. Nessa altura tudo começava a correr bem, e sabiam que o futuro estava para chegar.
Mas não tinha chegado para os dois. Quando primeiro o pé lhe deixou de obedecer riram-se do seu jeito desajeitado de tentar jogar à bola. Depois começou a coxear, e o médico disse que eram os ossos. E cada vez se mexia menos, o pé. E ele a gritar-lhe que carregasse mais no fim do adagio. E nada. O pé parado a olhar para ele com um ar interrogativo, e ele a olhar para o pé, como o médico olha sem perceber o discurso triste de um louco.
Bolas.
E depois foi o dedo. Primeiro só um. Na mão esquerda. A ficar lento demais para qualquer escala aceitável. E o sonho a gritar cada vez mais que estava a morrer. Mas ele já sabia. E abandonou-o no altar antes de o funeral começar.
Tudo mudou, e a paixão viajou para os intestinos, onde se mostrava em cólicas e náuseas impossíveis de suportar. Até o final glorioso da nona agora lhe parecia um coro de velhas desajeitadas na aldeia a gemer um hino ao senhor que não queria saber delas para nada, e que ditava às lages o trágico destino de as suportar repetidamente até se desmoronarem num suspiro de desespero. Como era possível, aquela força, aquela vida, o grande acto de rebelião do monstro, a única alegria alguma vez realmente cantada, lhe angustiar tanto os sentidos? A desolação tinha sido há muito acossada do seu espírito, e todas aquelas recordações agora estavam amontoadas num compartimento particularmente distante das suas memórias.
Mas nunca lhe conseguira dizer não. Ao que parece os cinquenta anos eram muito mais que os quarenta e nove afinal. Talvez ele fosse morrer no próximo ano e não lho quisesse dizer. Muito bem, mesmo assim poderia ter-se lembrado da angústia que lhe provocaria voltar a ouvi-la. Mas , num acto de coragem e desafio que não se sabia capaz - ou talvez, quem sabe,
(não, não poderia ser, ) saudade?-foi.
Todos os pretextos foram refutados tão efusivamente que acabou por não ter de qualquer modo outra alternativa. E foi tudo o que esperava e muito mais. Uma tortura, um deslumbramento, uma irritação imensurável perante tantos sons que tentara expulsar de si para sempre. Mas tudo era difuso agora, e todas aquelas sensações se dissiparam quando as viu.
Ali, ao seu lado, alegres e saltitantes ao ritmo do molto vivace do segundo andamento, como se sempre tivessem sido saudáveis. Sim. As suas mãos. As mãos que perderam todo o seu respeito há tanto tempo atrás, ali, num corpo estranho, vivas. Mas o corpo não era seu. Tentou olhá-lo. Não conseguiu. A sua mente sentia-se perturbada, sentia tonturas, sabia que a música prosseguia apenas pelas vibrações involuntárias do seu corpo ainda treinado, mas tudo o resto eram dedos, tudo o resto eram unhas que ele julgara para sempre enterradas na paralisia selvagem dos seus ossos. Mas estavam ali, e a atracção era tão forte que se sentia perder os sentidos, e o transe de todas as recordações enterradas naquela parte distante foram vomitadas por uma porta escancarada por aquelas mãos suas que já não eram. Deixou-se ficar na sala após o final, ainda com os olhos semicerradas, com medo de as voltar a ver, sabendo que o pavor que o possuíra o destruiria em poucos segundas se as voltasse a vislumbrar. Depois, segundo julga lembrar-se, arrastaram-no até à casa dele, onde a festa prosseguia. Havia sido um sucesso, alguém lhe declarou alegremente, mas para ele era apenas um murmúrio, e juntando todas as forças que ainda lhe sobravam, arrastou-se para casa depois de um adeus recusado.
Mas a luz só dava sombras. E aquelas mãos não lhe saíram mais do coração.

domingo, março 25, 2007

Planícies secas, com cheirinho a holocausto
onde se sente o ranger de dentes do soldado fantasma
quando o americano dança a vitória no seu dorso esquartejado.

sábado, fevereiro 17, 2007

Vilnius II

Ninguém me pode julgar pelo que se passa aqui. É tudo demasiado diferente para alguém que cá não está perceber como é bom deitarmo-nos com o nascer do sol a correr pelo quarto e acordar pertinho da lua. Como é saborosa a pasta dos italianos, e como sabe ainda melhor de madrugada regada de gargalhadas e conversas sobre tudo e sobre nada. E sair à noite é cada vez mais um ritual indispensável, uma estrada aberta de par em par para novas pessoas, novos costumes, e novas asneiras (Sim, porque ouvir os franceses cantar a marselhesa meia hora seguida no autocarro às cinco da manhã não é propriamente muito agradável, mas não faz mal porque eles são os únicos que têm uma guitarra por aqui. E por muitas outras coisas).

Quem quer saber do frio? Acordar como hoje sem neve nas árvores é bem mais deprimente do que congelar com vinte graus negativos nas paragens de autocarro. Aí valem-nos o Caetano Veloso e o Rui Veloso cantados a plenos pulmões, e alguns gestos de carinho por enquanto muito disfarçados, e às vezes nem tanto. Posso tentar, mas duvido que a neve comece a cair ao som do Não há estrelas no céu. Mas vamos tentar na mesma.

Aprendemos tanta coisa que às vezes não sei se dentro de algum tempo nos conseguiremos lembrar de tudo, o que será uma pena.
Afinal na Turquia, no lado de cá pelo menos, poucas mulheres usam véus (Obrigado Ezghi!).
A vodka mesmo boa é da Polónia, mas ainda não chegou, estamos à espera da encomenda!
Os lituanos simpatizaram com o Hitler!
A frase de engate mais eficaz de todos os tempos não é afinal “You are very very white, you need to put some creame.”, mas sim “Sabes, eu sou estrangeiro.”.

Em termos profissionais continuamos num impasse lamentável. Esperamos pela definição do horário das aulas de russo, foi recusada a nossa inscrição nas aulas de lituano por faltas de vagas, ainda não sabemos que disciplinas vamos fazer ao certo, posso perder a viagem a Moscovo devido a um curso intensivo de duas semanas sobre Economias Comparativas, e o meu peremptório e isolado “Sim” à pergunta do professor de Globalização “Estavam as ideias de Marx correctas?” deu discussão para quase um quarto da aula, o que aparentemente deixou bastante satisfeito o professor. Mas vou precisar de empenho para continuar com esta bandeira em punho. Venham de lá o Manifesto Comunista e o discernimento para me ajudar.

Cada dia nos desiludimos com uma pessoa que afinal não é tão agradável. Mas no mesmo dia outras duas ou três nos surpreendem por duas ou três boas razões. Damos um passo atrás rumo a uma nova amizade, e logo de seguida três em frente. Passo de corrida porque o tempo vai ser pouco. Ingenuidade e desconfiança de mãos dadas para sobreviver nesta Torre de Babel de fazer inveja a qualquer deus.

terça-feira, fevereiro 06, 2007

Vilnius I

Até agora pensava que as saudades eram bonitas, saudosamente poéticas talvez. Sentir-me triste é tão nobre que às vezes o faço só para me elevar perante os olhares mais ingénuos. Mas não sabia que as despedidas e as saudades, as verdadeiras, nos fazem sentir apenas desgraçados, nos fazem sentir pendurados do pior dos penhascos seguros apenas pelo coração. Aquela dor não se compara a nada. E por isso foi, provavelmente, um dos momentos mais importantes da minha vida. Nenhuma certeza pode ser abalado depois daquela dor. Nenhuma.

A generosidade está em mim sem quaisquer culpas minhas. Seria possível abstrair-me de algo que, resumidamente, é o pilar fundamental da minha família? Será razoável, ou mesmo justo, pedir-me para esquecer o único ensinamento do qual nunca duvidei? Atrevo-me a dizer que no motor das minhas convicções é este provavelmente o combustível que as faz girar e crescer. Porque não interessa se acreditamos em Deus ou no Diabo. Não interessa se somos educados ou rudes. Não interessa se somos cultos ou ignorantes, ateus, cristãos ou apenas idiotas. Digam o que disserem, o que realmente importa, o que realmente faz a diferença neste mundo retorcido em que vivemos é aquilo que fazemos. E é por isso que admiro a minha família mais do que alguma vez possam entender, e ao contrário do que alguns possam julgar. Porque tenho mais de vós dentro de mim do que pensam, porque acredito em vocês mais do que parece, porque vejo além das vossas palavras e sinto-me capaz, por vezes, de sentir bem fundo as vossas almas.

Entendo perfeitamente que a minha ausência possa ser dolorosa para alguns de vós. Chamem-lhe pretensiosismo se quiserem. Eu chamo-lhe amor. Mas acredito piamente que são os momentos difíceis que nos definem, que são esses o que realmente mudam o nosso mundo. Por isso, aos que sofrem por mim restam apenas duas opções: Cresçam, ajudem-se e tornem-se mais fortes ou acabarão por sucumbir ao peso da solidão e da indiferença. Não há outra saída. Nem para mim.

Depois da chegada há muito para contar. O rigor ridículo dos alemães e a permissividade tipicamente lusitana lutam arduamente para conquistar o nosso ódio que, apesar de tudo, se inclina drasticamente para os germânicos. Talvez seja porque foram eles que nos obrigaram a pagar mais 32€ pelo peso excessivo das bagagens ou por nos proibir de transportar alguns objectos que ficaram ou no lixo, ou na casa do justiceiro que heroicamente impediu que os mesmos embarcassem e levassem à morte de todos os passageiros no nosso avião.
A residência apresenta sérias dificuldades em conquistar-nos devido a pequenos pormenores como a cozinha comum para cada um dos andares, as deficientes condições de acesso à Internet, os dois chuveiros por andar mas, apesar de tudo, será aqui o nosso refúgio nas próximas semanas, enquanto tentamos encontrar um sítio melhor para ficar, o que dá tempo para a residência se redimir até lá. Os ocupantes têm feito um bom esforço nesse sentido. Entre o nosso “grupo” destes dois primeiros dias podemos contar gente de tão diferentes lugares que ainda não percebi ao certo onde vim parar. Da Bélgica à Lituânia, da Polónia à Austrália, passando pela Espanha, Turquia, Itália ou Alemanha, todos trazem algo de novo que assimilo com tanta dificuldade como a neve e o frio. Acusaram-me de ser demasiado calado. Imaginem! Estava apenas demasiado concentrado a contemplar e apreciar todas as coisas novas: A neve nas árvores, a lama nas estradas, os rostos duros difíceis de penetrar, a língua enrolada e deveras aliciante, a comida extraordinariamente aceitável. O meu pretensiosismo (é o que alguns lhe chama) não me desiludiu desta vez, e o meu inglês falado estava tão bom ou mesmo melhor do que esperava. Um destes dias talvez tenho tempo para o treinar aqui, como já mo pediram, mas por agora outras preocupações me sacodem o pensamento. Como tentar adormecer antes das cinco da manhã que se aproximam perigosamente, e como suportar o ressonar cavernoso de um dos meus companheiros de quarto. Amanhã acordo só na segunda!

quinta-feira, janeiro 25, 2007

As asas dos génios - Última pena

Será a imortalidade prémio suficiente para vidas que, segundo os padrões vigentes, tiverem pouco de felizes? Se a vida depois da morte existe, é provável que tal sacrifício valha a pena. No entanto não creio que as mentes mais brilhantes se deixem levar por um conceito tão redutor. Estarão agora do outro lado a sorrir enquanto escrevo estas palavras como tantos outros fizeram, sorrindo refastelados em toda a sua eterna glória. Ou então desapareceram mesmo para sempre, e a sua vida foi uma miséria. Não me enganam. Sei tão bem quanto eles que só há uma felicidade. A nossa.

Porque será que os génios parecem escassear cada vez mais nesta nossa humanidade? Estarão estes apenas escondidos, subavaliados, desaproveitados por uma sociedade que cada vez atenta menos ao individuo como peça única desta engrenagem cósmica? Ou estarão as potencialidades a ser cortadas de raiz quando se pensa estar a melhor a qualidade do ensino, da educação, do conhecimento? Poderão talvez estar apenas concentradas em áreas de menor notoriedade da vida social, poderá ter-se o conceito de genialidade tornado demasiado ambíguo para que seja usado com à vontade quando se referem pessoas ainda vivas ou demasiado presentes na história recente do nosso mundo. Pode ser tanta coisa. Ou então pode ser que os génios vivam apenas em lamparinas e tudo o que temos de fazer é esfregar as consciências para os ver nascer.

quarta-feira, janeiro 17, 2007

As asas dos génios - Segunda pena

A exploração da mão-de-obra infantil é um dos atentados mais básicos aos direitos humanos, consagrado na lei de qualquer Estado minimamente digno. Qualquer criança será portanto impedida de participar em qualquer actividade profissional até uma certa idade, 16 anos no caso do nosso país. Qualquer pai que tente usar o filho para proveito próprio ou para o seu sustento sendo este menor, cometerá um crime.

Quando Mozart era exibido nas cortes Germânicas e Austríacas com apenas 6 anos de idade, não estaria o seu pai a aproveitar-se do próprio filho para lucrar financeiramente com tão precoces e inauditas capacidades musicais? Não preferiria o pequeno Mozart jogar à bola, jogar à apanhada com os amigos como qualquer criança dita normal? O seu comportamento rebelde como adolescente aponta para que o pequeno prodígio tivesse realmente tanto apreço pelos prazeres típicos da sua tenra idade como qualquer outro rapaz. No entanto, se o pai Mozart não tivesse imposto ao filho a disciplina e o rigor, se não o apresentado às grandes cortes do centro da Europa, possivelmente este nunca ser teria transformado num dos maiores génios musicais de sempre.

sábado, janeiro 13, 2007

As asas dos génios - Primeira pena

"O indivíduo em consulta sofre de múltipla personalidade, assim como de indícios de esquizofrenia a que a primeira condição está muito provavelmente associado. Recomenda-se a medicação abaixo proscrita, administrada duas vezes ao dia, e permanente vigilância. Sendo os parentes incapazes de a providenciar, o Estado acolherá o paciente numa das suas instituições de modo a que o mesmo possa continuar a sua vida sem pôr em risco a sua integridade física nem a dos que o rodeiam."


Este diagnóstico, a ter sido feito, privaria a Humanidade de um dos seus grandes génios. Seria uma vida de clausura e intoxicação médica a que levaria Fernando Pessoa se nascido no século XXI, no seio de uma família dita “preocupada” com a saúde dos seus rebentos. Não que o diagnóstico estivesse errado. A desfragmentação da sua individualidade, tenha sido só criação ou facto decorrente da sua vida propriamente dita, é um dado adquirido, acima de quaisquer dúvidas e tido como vértice essencial da genialidade do poeta. Agora pergunto-me: Como reagiria um desses pais tão preocupados quando a professora de Língua Portuguesa lhe dissesse que o seu filho não só assinava com nomes diferentes os diversos trabalhos encomendados como também o conteúdo e os pontos de vista dos mesmos eram claramente díspares? A consulta num psicólogo seria uma questão de semanas, e a primeira ida ao psiquiatra uma questão de meses. Em grande parte dos casos.