sábado, fevereiro 17, 2007

Vilnius II

Ninguém me pode julgar pelo que se passa aqui. É tudo demasiado diferente para alguém que cá não está perceber como é bom deitarmo-nos com o nascer do sol a correr pelo quarto e acordar pertinho da lua. Como é saborosa a pasta dos italianos, e como sabe ainda melhor de madrugada regada de gargalhadas e conversas sobre tudo e sobre nada. E sair à noite é cada vez mais um ritual indispensável, uma estrada aberta de par em par para novas pessoas, novos costumes, e novas asneiras (Sim, porque ouvir os franceses cantar a marselhesa meia hora seguida no autocarro às cinco da manhã não é propriamente muito agradável, mas não faz mal porque eles são os únicos que têm uma guitarra por aqui. E por muitas outras coisas).

Quem quer saber do frio? Acordar como hoje sem neve nas árvores é bem mais deprimente do que congelar com vinte graus negativos nas paragens de autocarro. Aí valem-nos o Caetano Veloso e o Rui Veloso cantados a plenos pulmões, e alguns gestos de carinho por enquanto muito disfarçados, e às vezes nem tanto. Posso tentar, mas duvido que a neve comece a cair ao som do Não há estrelas no céu. Mas vamos tentar na mesma.

Aprendemos tanta coisa que às vezes não sei se dentro de algum tempo nos conseguiremos lembrar de tudo, o que será uma pena.
Afinal na Turquia, no lado de cá pelo menos, poucas mulheres usam véus (Obrigado Ezghi!).
A vodka mesmo boa é da Polónia, mas ainda não chegou, estamos à espera da encomenda!
Os lituanos simpatizaram com o Hitler!
A frase de engate mais eficaz de todos os tempos não é afinal “You are very very white, you need to put some creame.”, mas sim “Sabes, eu sou estrangeiro.”.

Em termos profissionais continuamos num impasse lamentável. Esperamos pela definição do horário das aulas de russo, foi recusada a nossa inscrição nas aulas de lituano por faltas de vagas, ainda não sabemos que disciplinas vamos fazer ao certo, posso perder a viagem a Moscovo devido a um curso intensivo de duas semanas sobre Economias Comparativas, e o meu peremptório e isolado “Sim” à pergunta do professor de Globalização “Estavam as ideias de Marx correctas?” deu discussão para quase um quarto da aula, o que aparentemente deixou bastante satisfeito o professor. Mas vou precisar de empenho para continuar com esta bandeira em punho. Venham de lá o Manifesto Comunista e o discernimento para me ajudar.

Cada dia nos desiludimos com uma pessoa que afinal não é tão agradável. Mas no mesmo dia outras duas ou três nos surpreendem por duas ou três boas razões. Damos um passo atrás rumo a uma nova amizade, e logo de seguida três em frente. Passo de corrida porque o tempo vai ser pouco. Ingenuidade e desconfiança de mãos dadas para sobreviver nesta Torre de Babel de fazer inveja a qualquer deus.

terça-feira, fevereiro 06, 2007

Vilnius I

Até agora pensava que as saudades eram bonitas, saudosamente poéticas talvez. Sentir-me triste é tão nobre que às vezes o faço só para me elevar perante os olhares mais ingénuos. Mas não sabia que as despedidas e as saudades, as verdadeiras, nos fazem sentir apenas desgraçados, nos fazem sentir pendurados do pior dos penhascos seguros apenas pelo coração. Aquela dor não se compara a nada. E por isso foi, provavelmente, um dos momentos mais importantes da minha vida. Nenhuma certeza pode ser abalado depois daquela dor. Nenhuma.

A generosidade está em mim sem quaisquer culpas minhas. Seria possível abstrair-me de algo que, resumidamente, é o pilar fundamental da minha família? Será razoável, ou mesmo justo, pedir-me para esquecer o único ensinamento do qual nunca duvidei? Atrevo-me a dizer que no motor das minhas convicções é este provavelmente o combustível que as faz girar e crescer. Porque não interessa se acreditamos em Deus ou no Diabo. Não interessa se somos educados ou rudes. Não interessa se somos cultos ou ignorantes, ateus, cristãos ou apenas idiotas. Digam o que disserem, o que realmente importa, o que realmente faz a diferença neste mundo retorcido em que vivemos é aquilo que fazemos. E é por isso que admiro a minha família mais do que alguma vez possam entender, e ao contrário do que alguns possam julgar. Porque tenho mais de vós dentro de mim do que pensam, porque acredito em vocês mais do que parece, porque vejo além das vossas palavras e sinto-me capaz, por vezes, de sentir bem fundo as vossas almas.

Entendo perfeitamente que a minha ausência possa ser dolorosa para alguns de vós. Chamem-lhe pretensiosismo se quiserem. Eu chamo-lhe amor. Mas acredito piamente que são os momentos difíceis que nos definem, que são esses o que realmente mudam o nosso mundo. Por isso, aos que sofrem por mim restam apenas duas opções: Cresçam, ajudem-se e tornem-se mais fortes ou acabarão por sucumbir ao peso da solidão e da indiferença. Não há outra saída. Nem para mim.

Depois da chegada há muito para contar. O rigor ridículo dos alemães e a permissividade tipicamente lusitana lutam arduamente para conquistar o nosso ódio que, apesar de tudo, se inclina drasticamente para os germânicos. Talvez seja porque foram eles que nos obrigaram a pagar mais 32€ pelo peso excessivo das bagagens ou por nos proibir de transportar alguns objectos que ficaram ou no lixo, ou na casa do justiceiro que heroicamente impediu que os mesmos embarcassem e levassem à morte de todos os passageiros no nosso avião.
A residência apresenta sérias dificuldades em conquistar-nos devido a pequenos pormenores como a cozinha comum para cada um dos andares, as deficientes condições de acesso à Internet, os dois chuveiros por andar mas, apesar de tudo, será aqui o nosso refúgio nas próximas semanas, enquanto tentamos encontrar um sítio melhor para ficar, o que dá tempo para a residência se redimir até lá. Os ocupantes têm feito um bom esforço nesse sentido. Entre o nosso “grupo” destes dois primeiros dias podemos contar gente de tão diferentes lugares que ainda não percebi ao certo onde vim parar. Da Bélgica à Lituânia, da Polónia à Austrália, passando pela Espanha, Turquia, Itália ou Alemanha, todos trazem algo de novo que assimilo com tanta dificuldade como a neve e o frio. Acusaram-me de ser demasiado calado. Imaginem! Estava apenas demasiado concentrado a contemplar e apreciar todas as coisas novas: A neve nas árvores, a lama nas estradas, os rostos duros difíceis de penetrar, a língua enrolada e deveras aliciante, a comida extraordinariamente aceitável. O meu pretensiosismo (é o que alguns lhe chama) não me desiludiu desta vez, e o meu inglês falado estava tão bom ou mesmo melhor do que esperava. Um destes dias talvez tenho tempo para o treinar aqui, como já mo pediram, mas por agora outras preocupações me sacodem o pensamento. Como tentar adormecer antes das cinco da manhã que se aproximam perigosamente, e como suportar o ressonar cavernoso de um dos meus companheiros de quarto. Amanhã acordo só na segunda!