terça-feira, março 29, 2011

Nocturno

"Como se fosses noite e me atirasses
Uma corda de músculos e rosas.
Como se fosses noite e me deixasses
Deslumbrado com todas as sombras,
Com todos os silêncios,
Com todos os passeios de mãos dadas com o impossível,
Com todos os minutos,
Os lentos, os belos, os terríveis minutos
Que se escoam com a angústia nas escadas.
Como se fosses noite e acordasses
Todos os olhares furtivos aos bancos vazios,
Todos os passos hesitantes que ninguém segue
Mas que deixam na rua deserta,
Na cidade ausente,
O arabesco triunfal dum arcanjo que passa,
O rasto vitorioso dum condenado que dança,
Rindo dos deuses que o julgaram.

Como se fosses noite e arrastasses
O tule hierático e vermelho da cauda de todas as prostitutas
Que desafiam o mistério, roçagando,
A ganga de todos os operários
Que sofrem o mistério, fumando,
O cabeção ingénuo de todos os marujos
Que sonham o mistério, ondulando,
A renda esfarrapada, esvoaçante e preciosa de todos os invertidos
Que inventam o mistério, desesperando,
E a carne, o sangue,
O cheiro a suor e a sono de todos os vadios,
De todos os ladrões que dormem nas esquadras
E têm o mistério, ousando!

Ah! Se tu fosses noite e me atirasses
A um poço de membros e de raiva
Onde plantas carnívoras crescessem
E onde Deus - se existisse - talvez me abrisse os braços!"




José Carlos Ary dos Santos

sexta-feira, março 18, 2011

The first day of spring

The sun is shining bright. Darkness is all around, locked in promiscuous soon to be broken hearts. It's the first day of spring. The future's black and holy, and we see imaginary suns slipping through our mistaken souls. Ready to be torn apart. Ready for the blue-neon apocalypse of another dirty night.
We are ready. The unholy war of sex and passionless disappointment calls us by the name. All the homeless spirits cry, oh they cry, for the fratricide of our sad dirty dreams of raped lovers under the blue empty sky.
Let the shredded heart and bones prove, once and for all, that all of our faked smiles will soon be ripped apart by the memories of dark incestuous futures yet to come.
Se te caísse uma flor do cabelo.
Se o tempo se esquecesse de continuar.
Ou se o mundo parasse, como um sossego primitivo de primaveras disfarçadas.
Se, num dia qualquer, igual a mais nenhum, o veneno se encher de coragem e explodir:
nesse dia, talvez, os meus olhos homicidas te expliquem
(num sorriso, como que as palavras)
que o fim está mesmo quase a começar.

quinta-feira, março 17, 2011

Ternura

"Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar
                                                                                      [ extático da aurora."


Vinicius de Moraes