domingo, janeiro 29, 2006

Se às vezes jorra de mim
um canto sem musa
trémulo, insistente
que seja esse que se ouve
na mais alto montanha
na noite mais escura
na casa mais suja
esta canção desesperada
raiva que arde em dias de lume brando.

Em cada olhar cinzento
em cada vestido flor, cinzento
cimento, em cada viagem
prados de alcatrão dormente
árvores plásticas, raízes tumulares.

Levem-me à destruição
dos campos a afundar-se no mar de pedra e pó
larguem-me os olhos que chorem
mostrarei num lancinante berro animal,
desumano, estas realidades vivendo normais
estas ilhas, Atlântidas inocentes
despedaçando-se no sentido
do progresso, para trás.

Morreria vendo a vida morrendo,
Vivo vendo a morte nascendo.

terça-feira, janeiro 24, 2006

"Is man merely a mistake of God's? Or God merely a mistake of man's?" - Nietzsche

A ganância seria, caso eu conseguisse confinar o meu pensar a alguns dogmas aos quais pudesse chamar religião, o único pecado capital. Apenas um se poderá comparar-lhe como causa de morte, sofrimento, desespero, pobreza, morte. Mas esse não existe, e por isso não o poderemos considerar um pecado, no caso da existência dessa mesma religião. Deus. Porque somos fracos ao ponto de temer o desconhecido, quando apenas deveria ser admirado. Porque gostamos demais da mesquinheza das nossas vidas para aceitarmos perdê-la sem saber o que virá depois. Deus, Alá, Buda, Cristo, Maomé, Buda. Poderíamos salvar o mundo usando-os. Em vez, usamo-los para o destruir, nomeando-os para as causas mais nobres, para os massacres mais justificados que são nenhuns. Porque por eles construímos templos que salvariam vidas e ajudariam os mais necessitados, caso não existissem. Guardamos tesouros cujo valor não tem cálculo possível, cuja adulação inútil os justifica, quando nada que é inútil poderá algum dia servir de justificação. E assim começou a humanidade a morrer, a perder-se rumo ao fim, quando descobriu o valor que a unitilidade pode ter, o valor da prepotência que sempre conspurcou os corações dos homens. Quando o sentido prático se dissolveu num emaranhado de valores e medições, de hierarquias e redomas de poder, de injustiça e desigualdade (que acabam por ser também valores e medições, sendo-o no entando de algo que nunca existiu: justiça, e igualdade, excepto, quem sabe, no início de tudo, quando o nada era ainda dominante), a humanidade começou a apodrecer de dentro para fora, e a podridão e a vilania implodiu, desde os nossos corações, expalhando-se como uma praga pelo mundo fora. E vemos agora morrer os nossos irmãos e não sentimos nada além de uma cólica enjoada fruto da decrepetitude dos seus cadáveres imundos. E assim vivemos num mundo podre, morto, pela ganância e pelo deus que nunca existiu, e que se tornou apenas mais um bode expiatório do eterno egoísmo humano.
Se me pedirem para dormir, não o farei.
Tenho uma missão, de acompanhar a noite solitária,
de partilhar a sua orgia de minutos lentos e decadentes
e sentir as suas dores silenciosas em cada estrela que não vejo,
iluminado pelo luar oculta por nuvens negras de queixume
perdido pelos segundos incoerentes que me assaltam ao passar.

Ergo-me em tom de desafio, sono que vais tão longo,
não te darei o prazer da rendição
na minha alma fui feito rebelde,
forjado por punhais de aço,
que me acariciam o coração descalço
frios, tão frios,
lâminas frias, punhais frios,
e o meu coração tão duro.

Mirar-te-ei nos olhos e então
então ver-me-ás sorrir com a aurora
e nada me faltará,
serei o glorioso soldado
erguendo o queixo sobre o campo,
sobre o corpo
sobre o sangue
do soldado decapitado
que me olha com o seu olhar branco
vazio
sono vazio
e dir-te-ei
"perdeste de novo a batalha."

Sinto o frio da geada cair sobre mim
e limpo a espada que em momentos
segundos, tempos,
ferirá de sono o meu coração
e aí
tombarei
lado a lado
com o soldado sem cabeça
de olhos blindados,
e ficarei perdido
no branco do olhar daquele soldado
morto como ele,
perdido como ele,
vazio
sono vazio,
entre ervas de sangue e de saudade
erguerei o meu sono
sereno e diurno,
morro sozinho,
mas a noite acompanhada.