domingo, novembro 12, 2006

Jamie Cullum @ Coliseu dos Recreios - 09.11.2006



Se não te vi ontem foi porque caí numa andorinha e voei. Mas se me entraste no olho como areia pequenina ou neve, talvez tenhas chegado perto demais para te ver entrar.

sábado, novembro 04, 2006

Elogio Fúnebre

Quando morreste esqueci-me de chorar. Talvez como forma de rebeldia, como aprendi a fazer nas tardes em que perdia dúzias de berlindes sem desistir. Na altura não chorar era uma das faces dessa minha rebeldia. Hoje talvez seja a única.
Não entendo o que o padre diz. "Faleceu". Gente como nós morrer, falecer é um eufemismo só ao alcance dos outros. Por isso, por muito que a Marta e o Pedro insistissem, não permiti na igreja uma flor que fosse para além do nosso ramo. Nove rosas brancas de amor e de paz. Para sempre o nosso nove. De sorte e de azar.
Enquanto eles te carregam aos ombros acompanho-os, incapaz de me abstrair do decote sombrio da nova namorada do Luís. Duas faces, dois peitos resplandecentes sorrindo nesta tarde em que mais ninguém parece querer sorrir. Será que sorriem por inteiro, aqueles seios? Que felizes são os seios que sorriem sempre, como os teus. Como devem sorrir ainda aí dentro, revoltando-se contra esta tristeza de faz de conta, numa alegria sublime que é o que ainda sinto, provavelmente porque me esqueci de a apagar.
O Pedro e a Marta querem que vá viver com um deles. Eu ri-me e eles assustaram-se " e se acontecer alguma coisa?". Não quero fazer parte da mobília deles, coitados, agora com as crianças tão grandes. Nunca gostei de televisão nem de futebol nem de qualquer tipo de espectáculo. Falta-me a vocação para espectador. Não quero sentar-me à tua espera enquanto assisto escondido às vidas deles. Também nunca fio coscuvilheiro a esse ponto. Vou ficar por aqui a ver a minha vida passar devagarinho, e vivê-la se me der vontade para isso. Senão contento-me a ver a nossa passar outra vez. É uma ideia bem mais bonito do que vestir de preto neste descampado gelado cheio de cruzes. Acabaram de te semear, e acho que já não preciso mais de mim. Digo discretamente adeus aos meus amigos sorridentes, e saio feliz enquanto o Pedro se engana outra vez.
"Não. A tua mãe morreu."

sexta-feira, agosto 18, 2006

Nunca irás entender a incondicionalidade do meu amor. É uma fatalidade que preciso de respeitar para sobreviver. Mas tu não entendes. Não percebes que o mundo deveria desabar numa vénia imensa sempre que passas. Que todos deveriam fechar os olhos e a boca quando tu falas. Não. Nunca vais perceber que o mundo gira apenas para te ver sorrir. Que um gesto teu nos pode salvar a todos. Que o silêncio se inquieta enquanto a tua gargalhada não chega. Que o nevoeiro só se desfaz em orvalhos carinhosos quando te vê passar.
Nunca iremos ouvir os coros celestes. Os anjos pousaram as harpas para te poderem ver dançar. As máquinas calaram-se, esperando timidamente o estalar das tuas palmas entusiasmadas.
Mas tu não sabes.
E assim, colhes flores no jardim sem realmente saberes que o mundo é todo teu.

domingo, agosto 13, 2006

Nocturnus

Foi a minha sombra que hoje passou pela estrada
curvada
desvanecendo em lampiões ocasionais
sob um luar de cartão quase postiço...
Houve hoje gargalhadas feriais
saltos em auroras nocturnas plenas de artificialidade...
tão belas...
e eu quase estive lá.
Começavas num trilo relâmpago desfalecendo subitamente numa cadência maldita até aos acordes trovejantes ao mar enraivecido. Plantado no precipício eras imponente e suicída. O mar extendia os dedos em ondas tenebrosas apenas para assistir novamente a mais uma fuga allegra triunfante só tua.
(Ao longe, um lobo em transe uiva em sol menor o apoio incondicional à tua redenção.)
Finalmente, o mar para, rendido. Sereno, ergues-te da negrura do teu banco e abandonas piano ao silêncio do tempo, mergulhando soberbo nas ondas.

quarta-feira, julho 19, 2006

Balada da Cidade Deserta

V - À Chuva

Reposteiros constipados bocejam flashes ocasionais de um relâmpago esquecido, reflectido nas janelas. As ruas estão desertas, molhadas. Lá em cima, a chuva inundou a lua de escuridão. Amanhã, dilúvio, crucificar-te-ão. Esta noite beijamos-te com rosas ao relento, no mergulho de todos, desta arca de ninguém, fugindo convictos ao salvador.

segunda-feira, julho 17, 2006

Balada da Cidade Deserta

I – Gato Preto

Na noite, escura, gato preto, acompanhas o meu regressar vagaroso deslizando indiferente na escuridão. Vejo-te nesta esquina e num ou outro parque, sempre tão distante e certo como o negro de um céu sem lua. Quando a realidade trituradora parece acalmar e o meu cérebro aquece o descanso da solidão, vejo-te de novo, gato preto, pelas ruas escondidas, parado, estranhando a luz como eu estranho as manhãs gritantes cheias de pressões para não me deixar pensar. Habituados às luzes, habituados aos gritos, nós, gatos pretos, serenamente esperamos pacientemente um dia de paz para pensar.

II – Pai Suicida

Atravessas-te de novo nos faróis da minha máquina aceleradora. Ainda hoje não entendo por que levas o teu filho no colo, e te ajoelhas na estrada rezando o suicídio. Uma e outra vez te jogas nos riscos brancos de passagem, à espera da morte como que da carreira que te levará daqui para fora. Enquanto ofereces resoluto mais uma cigarrilha aos cheiros do teu recém-nascido, entregas-te ao desconsolo de mais uma estrada em perpétuos movimentos de passagem. Gostava de ver o teu vaguear inerte no meio dos carros quando as chuvas chegarem e levares a tua criança debaixo de um chapéu-de-chuva negro. Talvez então acredite que sobreviverás.

III – Telefonia Abandonada

Ecoas triste como um órfão abandonada. As arcadas albergam agora todo o desconsolo que cantas, quase vazia, quase temendo continuar. Ainda assim cantas. Nós, tantos separados, sozinhos, sem esperança, choramos já a saudade que há de vir. A esperança é para nós o anúncio do que um dia nos irá faltar. Fingimos acredita-la sabendo no fundo que não queremos mais do que uma razão para cantar o nosso fado de saudade. O nosso Reino Desalento canta nas escadas a tristeza que nos faz feliz.

IV – Lua

Escondes-te minguante entre nuvens de rendas finas e compridas. Através deste papel vegetal de humidade chegas-me como um prenúncio de desistência. As estrelas fugiram, e tu, tremendo, aguardas oculta o momento em que a coragem te faltará e partirás para longe, atrás delas. Quando nos inundarmos já cá não estarás. Amas-nos demais para ver esta nossa morte tão certa e anunciada. Tão pérfida. Tão evitável. Obrigado por nos acompanhares até ao nosso último momento de viver. Parte antes que a morte acabe de começar.

segunda-feira, julho 03, 2006

Por cartas que de amor nunca serão rídiculas,
deitamos as vidas fora por um momento só...
Lançando amor à eternidade como seixos no mar,
Jogando ao amor descalços como meninos de rua,
roubamos silêncios às multidões para enterrar no jardim...
Partilhando um pequeno pedaço de trigo
da manhã até à lua, sentados no passeio,
relatando um ao outro o que nunca aconteceu.
Dançando à chuva rituais de ser feliz
em ruas desertas em medos de noite.
Vagueando por árvores e atalhos
procurando o que se segue entre os arbustos e as flores
dentro dos ninhos, nos espinhos das rosas.
Mergulhando no rio para falar com os peixes e aprender a voar.
Lendo páginas alheias da nossa estória
aprendendo pedaços de nós em palavras imaginadas.
Cantando assobios fora de tom
para sermos mais um passarinho apenas
nos ramos que trepamos para poder saltar.
Parando aqui e além para escutar
quietos, mudos, em respeito,
outros que não conseguem amar.

o sangue. Vem todo do coração.

Panos Brancos

Erguei panos brancos sob o luar nas praças,
nas casas, e nos parlamentos, lenços brancos erguei.
Na cama do casal a fingir amar-se para poderem ser como leões
(mas sem vergonha)
vai-se erguendo o lençol branco transparecendo o suor mentiroso.
Nas escolas crianças entendem talvez e tiram as meias brancas,
unidas pelos cheiros, naturezas vivas, acenando vivamente.
E os que resistirem, sem brancos, sucumbirão
a esta força, que o sol desceu à terra para queimar
arder
porque o sol do final dos dias não está no espaço
apenas no fundo do mundo
no passar dos tempos escondidos
fluíndo em magnânimas ondas
do meu coração, e de tantos mais.

domingo, junho 25, 2006

de não saber
mentir
de olhar
rostos de prata, sorrir em paz
desenhos perfeitos
sorriso, fantasmas
do fundo, de dentro
para o mundo
verdadeiro, de alma

sois que brilham
de luz
ondas de sal que os banham
leve, suave suave
de dentro da terra
para nós
por nós
de ti
para ti

luas, crescente e minguante, brilhante
cortadas na estrela vespertina da aurora
sorriam, como sempre, sorri
leões soltos, sedentos de caça
feiticeiros, magos, imperadores, ditadores
soltai ao vento o poder oculto
negro da magia que nos fascina
o tenebroso olhar escarlate
sorridente

o que és
deusa, musa, destino,
espera, efémera, teimosia
de lágrimas soltas por cair
enxugadas, perdidas
pedidas ao sorriso crepuscular em dias sem fim
amarelo, laranja, rosado, encarnado, carmesim...

cedo agora
cansado de não resistir
à espiral centrífuga de tumultos intra venosos
pulsando sangues fugidios
transfusões de fogo e chama
ao sangue da tua alegria

terça-feira, maio 30, 2006

a minha melancolia será eternamente o alarme insistente dos meus erros passados.
o medo de pensar e dormir, o receio disfarçado de euforia em actos que se resumem apenas a manobras de diversão da máquina de guerra que é este esboço de vida com cores a mais e carvão a menos.
o perder tempo a esquecer que a mudança se impõe e a não consigo assumir, a bandeira que espera ardendo o meu punho para a erguer.
receios do peso que a dor do mundo causa neste coração de espinhos. espinhos como a coroa que o rei aceitou ao morrer, esse que lavou todos os pés para provar que somos todos iguais, que a igualdade é um direito inerente à nossa mesma existência
- a matilha lá fora uiva, e a existência torna contornos factuais, e afinal são existências diárias estranhas que deixo passar por mim.
hoje beijam-lhe os pés, e sacrificam-lhe vidas e mortes. para que lavaste tu os pés aos que amavas afinal? nada aprenderam.
o mundo não passa de um erro persistente na interpretação dos actos. as palavras, essas, não o podem ser acertadamente sequer. oh gramáticas dúbias de ambiguidades nascidas! se apenas agíssemos, seriam os nossos erros menores?
entrego-me ao silêncio, esse que me atormenta a solidão do mundo que sinto sempre que uma folha se move na calçada deserta, e as andorinhas voam sempre sozinhas. sempre sozinhas. como nós. eternos acompanhamentos de solidão.

quarta-feira, abril 19, 2006

Guardei-te numa caixinha de veludo vermelho que carrego ao peito a que chamam coração.

terça-feira, abril 11, 2006

Profecia do desinteresse

Não queremos nada
mesmo nada
além do nada
para não nem ninguém.

Eis o coro ao qual me junto
calado
inerte por alienação
por ser mais um grão
de pó na areia pesada
da pedra na parede, e na casa,
peças de vida, peças de nada.

Nada, eis ao que nos entregamos
eu, e os que não são comigo
que são imóveis por vontade própria
como eu, também, por vontades suas
quieto
soterrado por tantos parados
que não me posso levantar.



se tentar, tentarás também?
se não, tentarei também.
confrontando a tua inércia
com um cravo na mão.

quarta-feira, abril 05, 2006

Hino à Terra

Onde está o cheiro da terra
esse odor, essa terra
que falta às minhas narinas
dilatadas como as de um perdigueiro
sem perdiz, sem bosque
sem vida para viver
sem vida para caçar
sem vida por matar?

Onde param os carvalhos
as oliveiras e os eucaliptos perfumados?
Onde está o sabor verde da paisagem,
o mugir triste das nossas vacas manchadas
como zebras de um hemisfério trocado,
o cantar do primeiro galo acordado pela aurora
o ladrar ameaçador dos cães soltos na serra
protegendo o rebanho no pasto espalhado
pelas montanhas, por essas escadarias
de comer e de passear, de ir e voltar?

Quando foi quer perdemos isto, meu Deus
meus amigos, quando?
Onde pairava o nosso olhar distraído
quando nos roubaram os rios cristalinos
e no seu lugar puseram correntes de lava
lava sujo como lodo,
lodo imundo como sangue?

Para onde meus caros, levaram
os nossos porcos, de sujidade deliciosos?
E de onde vêm afinal estes leões de metal
de rugido côncavo e gutural
de bafo negro, porco e quente?

Raios! Quando foi afinal que trocamos
os nossos campos de trigo à desfolhada,
os vinhos prontos a ser podados,
o cheiro da uva sob pés esmagada,
por perfumes de ervas plastificadas
por montanhas de cimento acimentadas
cinzento, frio, frio e pardo,
por corpos vazios de rostos uniformes
por palavras despejadas, por relações forçadas?

Para onde, por favor, onde
puseram a frescura verdejante que nos fazia sonhar
em que víamos palácios magnânimos nas colinas
e no horizonte um amanhã por desenhar?
Ajudem-me, ajudem-nos, pela vossa saúde, a encontrar
o mundo perdido que por aí anda, perdido
e nós perdidos nas ruelas, a sangrar...

Vamos juntar-nos irmãos, camaradas
e iniciar a derradeira jornada
juntem-se polícias, pedintes, estudantes
pedreiros, médicos, vendedores ambulantes.
Erga-se a criança no colo, e o avô nos ombros
e partamos
como nos tempos antigos
rumando para um mundo novo
o nosso velho mundo de lama
de relva, de chuva
de éguas parindo em desespero
de coelhos fornicando a voar
de touros morrendo moribundos
de rouxinóis cantando na rama
de cucos desafiando pela tarde
de flores no caminho que pisamos
de terra fresca sob os pés descalços,
pela chuva inclemente, pela humidade de prata,
pelas doenças incuráveis, pela próxima desgraça,
pelas capelas semeadas no meio do monte
pelas fontes escondidas na clareira secreta,
para recuperar o que já foi e queremos de novo
para ver jornaleiras cantando de cântaro à cabeça
sob o sol resplandescente do meio dia
para ouvir peixeiras anunciada em ribombos
o peixe ordinário da sua vida
para encontrar na esquina os comerciantes
parlamentando sobre o tempo e a vida
para sentir de novo irmãos, família, humanidade
o mundo nesse vestido de verde e castanho
mais brilhantes que ouro e prata,
para viver neste mundo que pode ser nosso
para abraçar de novo a terra inteira.
eu sofro mais por ser poeta
porque sinto mais fundo
mais dentro, mais longe...
porque as lágrimas das faces comuns
me escorrem na alma de vidro
deslizando o seu suave recorte pelo gelo
das minhas entranhas cansadas,
do meu ventre aberto à dor do mundo
que o viu nascer
que o viu viver
que o viu sofrer
por ser ventre de poeta
e ser poeta é ser sofrer...

sexta-feira, março 24, 2006

vou-te escreve este poema porque me obrigaste
sem querer
deste canto seco de solidão
nesta varanda sacudida pela saudade
pelas ruas sujas de chuva e homens
até à tua estrada inundada pela minha falta
curvando em espirais de água suja e gotas atiradas
sem pena, ao mundo, aguardando...

espero-te, quase quieto, quase calado
dedos deslizando para os versos que não quiseste
mas que forjaste pela demora
com que atinges a minha calma nervosa, tiritante
com medo de quebrar
parado, à espera de um ruído que se perdeu na tempestade
oh chuva que cais violenta
oh vento que tentas em vão abanar as vontades
oh tempo de pedra, que me atacas
oh noite sombria que esperas em meu nome
a chegada do dia.

segunda-feira, março 20, 2006

Saudades de não ter passado.

Acaba por ser comum a muitos a saudade da infância, quando sem sabermos porquê, nos dava tudo tanto prazer. Não são saudades de brincar na terra com os meus carrinhos que voavam sobre a pista por não saberem andar. Nem dos murros do meu primo por lhe ter ganho aos berlindes. É uma saudade mais profunda, é uma saudade séria e funda, não de brincar, uma saudade de sentir algo que custa a explicar, mas que se sente e nos força a sonhar com esse passado. Esse passado que insiste em fugir cada vez mais com o tempo, que insiste a aproximar-se cada vez mais da vontade. É, agora penso que sei, penso que descobri, saudades de não ter passado, saudades da inconsequência inconsciente do mais pequeno acto, de qualquer palavra, da liberdade da vontade, porque querer é poder, até deixar de o ser. São saudades de ter liberdade na consciência, essa liberdade que tanto proclamamos, e que defendemos com o passar da vida por sabermos que a liberdade em estado bruto, essa, fugiu-nos ao continuar a viver. São saudades, agora sei-o com certeza de ter pensado e dormido sobre o assunto por mais de uma semana, verdadeiras e racionais, saudades inteligíveis, até há pouco impossíveis de entender. Saudades de não ter passado.

sexta-feira, março 17, 2006

Cartas Rasgadas

Cortinas de fumo
sobem pelas escadas
das cinzas que foram
cartas rasgadas.

Na mansão dos sonhos
alimento o fardo
cinzenta e fria
Pablo e Leonardo.

Poeta sem folha
pintando a vazio
dormindo descalço
na pedra macia.

segunda-feira, março 13, 2006

Deixa-me dizer que te amo

Deixa-me dizer que te amo
uma vez mais
só mais uma vez
só mais esta vez
a última antes da próxima
como se fosse a primeira
como se fossem todas e uma só
só isto, estas letras
este amo-te que ergo como um estandarte
que lanço ao mundo como o hino de todos
o verbo que foi antes de tudo ser
a frase que começa pelo vim
o poema de um verso só...

Deste canto de madeira verdejante e cal imaculado
vou gritar uma vez mais ao abrir dos meus pulmões
vou cantar do fundo mais íntimo da minha caverna
ao mundo, segredando, a ti, a todos, a ti
só mais uma vez - sob a luz triste da noite
apenas esta vez - no frio que acolhe o nosso encontro
uma última, penúltima, primeira vez - e os anjos brilham sobre nós
sentido a imensidão do céu que nos rodeia - eu o sol, tu a lua
sabes, eu amo-te...

segunda-feira, março 06, 2006

As flores são eternas
as flores não sangram
as flores são belas
as flores não morrem.

É por isto
por seres flor
tulipa e cravo,
pétala e pólen,
por teres entranhado raízes
na terra fértil dos nossos corações
que viverás para sempre
que desabrocharás eternamente
no jardim das nossas memórias.

E veremos
em cada Primavera de lembrar
o teu rosto esculpido
de mármore como os grandes heróis,
o teu tronco enorme de nogueira
erguido no nosso jardim,
nesse pomar em flor a que chamam céu
florescendo,
brotando a cada segundo
sendo para sempre fruto,
para sempre flor,
sem fim nem tristeza.

Uma flor é sempre uma flor.
Deste mármore frio
desta tijoleira de descalço encarnado
desta brisa quieta de gelo
deste Inverno.
e todos eles, istos e aquilos
sou trazido pela noite
uma noite sem adjectivos
uma noite qualquer
sem verbos ou predicados
complementos ou qualquer outra manha.
É daqui e dali
e de qualquer outro lugar
que sou trazido
não sei se por mim
ou talvez sem mim.
sou trazido ou venho
a este poema que me espera
atrás de uma página perdida
de um pensamento com medo de me esquecer.

Visto de fatos de manteiga cobertos
torradas nuas roubadas à manhã
e então vejo duas pétalas púrpura
baloiçando inertes de uma jarra vazia.
Lá fora, a chuva irrita
a sua voz monocórdica
a sua humidade desgraçada
e frio, tanto frio
que não oiço, nem sinto,
no entanto é verdade.
E então lembro-me das putas.
Pobres putas, sem luar para aquecer
a alma, que os corpos serão sempre frios
mas corações vazios, esses ninguém os tem.
Sou um mestre quando toca a ter pena
sou uma imensa intempérie
de pensar e não agir
sou um indigno cárcere para pensamentos tão belos
ideias tão puras que faço calar.

Desiludido e refeito
descalço de mármores e intenções
trilho estas escadas trazido de novo
e entrego-me à pornografia
de um livro inerte
que se abre para me deixar entrar.

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Amo essa tua teimosia de menina
esse teu orgulho de leoa dominante
olhando soberba a pradaria vestida de trigo.
Como oásis brilham de frescura vivos!,
e se desfolham aguarelas na foz da solidão
deste amarelo cor de igual e de trigo
que se estala sob pés, espigas rasgadas,
folhas esmagadas em pés incautos...
como chove destruição despercebida
tão debaixo, tão dentro de nós...

Apenas a mim, Apenas em mim
despes a pele de predadora voraz
a máscara felina cai
a ternura desce.
Apenas eu vejo tempestades nascer
na savana desértica onde não chove
trovões estalactitantes na sede
de tão seca inundada
tão forte que por vezes cai fraca.
É assim o nosso fado
chovem torrências de cascatas impensáveis
se inunda em secos torrões de amarelo...
A cinza húmida levanta do céu
e voa com o vento.
O sol nasce
secando o tapete,
seco de nunca ficar molhado
a chuva cai, a vida cai, a chuva passa...
a vida não,
acaba.

sábado, fevereiro 18, 2006

Que rios de anos se alargam
em tempestuosos correntes, cavalgando
e fogem os tempos, e chegam modernos
outros, eras tão escassas.

Um dia eram poetas os escondidos
os proibidos, de talentos tumultuosos
em tempos a pela servia de folha
e unhas reclusas, gastas de fome, sem pena...
Como vinho a poesia esperava
décadas, ainda?, para cantar
poemas e cantos e odes.
Ao passar dos tempos
o som do canto que espera a liberdade
ergendo-se magnânimo, para sempre
poesia do passado...

Poesia do presente que te confundes
no versejar fácil das palavras
que são como madeira podre numa fogueira
desvanecendo...
Fedem os nossos sentidos, nauseabundas letras
vãs, palavras colados em versos que não são
e poemas chamam às torrentes insípidas de rimas
gentes confusas sem saber querer de verdade
perdendo a poesia, perdendo o pouco de poeta
que ainda nos resta
em lamaçais de falso lixo
espalhados ao vento em versos de plástico.

domingo, janeiro 29, 2006

Se às vezes jorra de mim
um canto sem musa
trémulo, insistente
que seja esse que se ouve
na mais alto montanha
na noite mais escura
na casa mais suja
esta canção desesperada
raiva que arde em dias de lume brando.

Em cada olhar cinzento
em cada vestido flor, cinzento
cimento, em cada viagem
prados de alcatrão dormente
árvores plásticas, raízes tumulares.

Levem-me à destruição
dos campos a afundar-se no mar de pedra e pó
larguem-me os olhos que chorem
mostrarei num lancinante berro animal,
desumano, estas realidades vivendo normais
estas ilhas, Atlântidas inocentes
despedaçando-se no sentido
do progresso, para trás.

Morreria vendo a vida morrendo,
Vivo vendo a morte nascendo.

terça-feira, janeiro 24, 2006

"Is man merely a mistake of God's? Or God merely a mistake of man's?" - Nietzsche

A ganância seria, caso eu conseguisse confinar o meu pensar a alguns dogmas aos quais pudesse chamar religião, o único pecado capital. Apenas um se poderá comparar-lhe como causa de morte, sofrimento, desespero, pobreza, morte. Mas esse não existe, e por isso não o poderemos considerar um pecado, no caso da existência dessa mesma religião. Deus. Porque somos fracos ao ponto de temer o desconhecido, quando apenas deveria ser admirado. Porque gostamos demais da mesquinheza das nossas vidas para aceitarmos perdê-la sem saber o que virá depois. Deus, Alá, Buda, Cristo, Maomé, Buda. Poderíamos salvar o mundo usando-os. Em vez, usamo-los para o destruir, nomeando-os para as causas mais nobres, para os massacres mais justificados que são nenhuns. Porque por eles construímos templos que salvariam vidas e ajudariam os mais necessitados, caso não existissem. Guardamos tesouros cujo valor não tem cálculo possível, cuja adulação inútil os justifica, quando nada que é inútil poderá algum dia servir de justificação. E assim começou a humanidade a morrer, a perder-se rumo ao fim, quando descobriu o valor que a unitilidade pode ter, o valor da prepotência que sempre conspurcou os corações dos homens. Quando o sentido prático se dissolveu num emaranhado de valores e medições, de hierarquias e redomas de poder, de injustiça e desigualdade (que acabam por ser também valores e medições, sendo-o no entando de algo que nunca existiu: justiça, e igualdade, excepto, quem sabe, no início de tudo, quando o nada era ainda dominante), a humanidade começou a apodrecer de dentro para fora, e a podridão e a vilania implodiu, desde os nossos corações, expalhando-se como uma praga pelo mundo fora. E vemos agora morrer os nossos irmãos e não sentimos nada além de uma cólica enjoada fruto da decrepetitude dos seus cadáveres imundos. E assim vivemos num mundo podre, morto, pela ganância e pelo deus que nunca existiu, e que se tornou apenas mais um bode expiatório do eterno egoísmo humano.
Se me pedirem para dormir, não o farei.
Tenho uma missão, de acompanhar a noite solitária,
de partilhar a sua orgia de minutos lentos e decadentes
e sentir as suas dores silenciosas em cada estrela que não vejo,
iluminado pelo luar oculta por nuvens negras de queixume
perdido pelos segundos incoerentes que me assaltam ao passar.

Ergo-me em tom de desafio, sono que vais tão longo,
não te darei o prazer da rendição
na minha alma fui feito rebelde,
forjado por punhais de aço,
que me acariciam o coração descalço
frios, tão frios,
lâminas frias, punhais frios,
e o meu coração tão duro.

Mirar-te-ei nos olhos e então
então ver-me-ás sorrir com a aurora
e nada me faltará,
serei o glorioso soldado
erguendo o queixo sobre o campo,
sobre o corpo
sobre o sangue
do soldado decapitado
que me olha com o seu olhar branco
vazio
sono vazio
e dir-te-ei
"perdeste de novo a batalha."

Sinto o frio da geada cair sobre mim
e limpo a espada que em momentos
segundos, tempos,
ferirá de sono o meu coração
e aí
tombarei
lado a lado
com o soldado sem cabeça
de olhos blindados,
e ficarei perdido
no branco do olhar daquele soldado
morto como ele,
perdido como ele,
vazio
sono vazio,
entre ervas de sangue e de saudade
erguerei o meu sono
sereno e diurno,
morro sozinho,
mas a noite acompanhada.