Quando morreste esqueci-me de chorar. Talvez como forma de rebeldia, como aprendi a fazer nas tardes em que perdia dúzias de berlindes sem desistir. Na altura não chorar era uma das faces dessa minha rebeldia. Hoje talvez seja a única.
Não entendo o que o padre diz. "Faleceu". Gente como nós morrer, falecer é um eufemismo só ao alcance dos outros. Por isso, por muito que a Marta e o Pedro insistissem, não permiti na igreja uma flor que fosse para além do nosso ramo. Nove rosas brancas de amor e de paz. Para sempre o nosso nove. De sorte e de azar.
Enquanto eles te carregam aos ombros acompanho-os, incapaz de me abstrair do decote sombrio da nova namorada do Luís. Duas faces, dois peitos resplandecentes sorrindo nesta tarde em que mais ninguém parece querer sorrir. Será que sorriem por inteiro, aqueles seios? Que felizes são os seios que sorriem sempre, como os teus. Como devem sorrir ainda aí dentro, revoltando-se contra esta tristeza de faz de conta, numa alegria sublime que é o que ainda sinto, provavelmente porque me esqueci de a apagar.
O Pedro e a Marta querem que vá viver com um deles. Eu ri-me e eles assustaram-se " e se acontecer alguma coisa?". Não quero fazer parte da mobília deles, coitados, agora com as crianças tão grandes. Nunca gostei de televisão nem de futebol nem de qualquer tipo de espectáculo. Falta-me a vocação para espectador. Não quero sentar-me à tua espera enquanto assisto escondido às vidas deles. Também nunca fio coscuvilheiro a esse ponto. Vou ficar por aqui a ver a minha vida passar devagarinho, e vivê-la se me der vontade para isso. Senão contento-me a ver a nossa passar outra vez. É uma ideia bem mais bonito do que vestir de preto neste descampado gelado cheio de cruzes. Acabaram de te semear, e acho que já não preciso mais de mim. Digo discretamente adeus aos meus amigos sorridentes, e saio feliz enquanto o Pedro se engana outra vez.
"Não. A tua mãe morreu."
2 comentários:
Fiquei com um nó na garganta. Os meus olhos ardem dolorosos...e saio antes que comece a chorar...
Abraço carinhoso
Isto está muito bem escrito e parece-me que não se deve só à mestria, mas ao sentimento que encerra. Dizem que os poetas não falam necessariamente de si ao escrever - não concordo, parece-me que quando falam de si, mostram o olhar profundo e doloroso que têm sobre as coisas.
Enviar um comentário