segunda-feira, julho 17, 2006

Balada da Cidade Deserta

I – Gato Preto

Na noite, escura, gato preto, acompanhas o meu regressar vagaroso deslizando indiferente na escuridão. Vejo-te nesta esquina e num ou outro parque, sempre tão distante e certo como o negro de um céu sem lua. Quando a realidade trituradora parece acalmar e o meu cérebro aquece o descanso da solidão, vejo-te de novo, gato preto, pelas ruas escondidas, parado, estranhando a luz como eu estranho as manhãs gritantes cheias de pressões para não me deixar pensar. Habituados às luzes, habituados aos gritos, nós, gatos pretos, serenamente esperamos pacientemente um dia de paz para pensar.

II – Pai Suicida

Atravessas-te de novo nos faróis da minha máquina aceleradora. Ainda hoje não entendo por que levas o teu filho no colo, e te ajoelhas na estrada rezando o suicídio. Uma e outra vez te jogas nos riscos brancos de passagem, à espera da morte como que da carreira que te levará daqui para fora. Enquanto ofereces resoluto mais uma cigarrilha aos cheiros do teu recém-nascido, entregas-te ao desconsolo de mais uma estrada em perpétuos movimentos de passagem. Gostava de ver o teu vaguear inerte no meio dos carros quando as chuvas chegarem e levares a tua criança debaixo de um chapéu-de-chuva negro. Talvez então acredite que sobreviverás.

III – Telefonia Abandonada

Ecoas triste como um órfão abandonada. As arcadas albergam agora todo o desconsolo que cantas, quase vazia, quase temendo continuar. Ainda assim cantas. Nós, tantos separados, sozinhos, sem esperança, choramos já a saudade que há de vir. A esperança é para nós o anúncio do que um dia nos irá faltar. Fingimos acredita-la sabendo no fundo que não queremos mais do que uma razão para cantar o nosso fado de saudade. O nosso Reino Desalento canta nas escadas a tristeza que nos faz feliz.

IV – Lua

Escondes-te minguante entre nuvens de rendas finas e compridas. Através deste papel vegetal de humidade chegas-me como um prenúncio de desistência. As estrelas fugiram, e tu, tremendo, aguardas oculta o momento em que a coragem te faltará e partirás para longe, atrás delas. Quando nos inundarmos já cá não estarás. Amas-nos demais para ver esta nossa morte tão certa e anunciada. Tão pérfida. Tão evitável. Obrigado por nos acompanhares até ao nosso último momento de viver. Parte antes que a morte acabe de começar.

3 comentários:

Anónimo disse...

tá tão bonito...
"A esperança é para nós o anúncio do que um dia nos irá faltar."

Jack Solow disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Anónimo disse...

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