sexta-feira, dezembro 21, 2012

licença para matar

(...)

Do outro lado da cama, ele consegue adivinhar-lhe o olhar cansado, por detrás das pálpebras fechadas. Na respiração constante que lhe aumenta o decote num ritmo lento, ele antecipa as lágrimas que lhes servirão de pequeno almoço. E espera.

(Há um sapato negro, mais fundo que a escuridão que lhes invade o quarto, esquecido no chão)

Naquele momento, dentro de tanto silêncio, por baixo da roupa que ela se esqueceu tirar, ele sabe que aquele corpo se prepara, com um repouso derradeiro, para se afastar irreversivelmente do seu. E assim, em vez de dormir, acaricia com os olhos todas as curvas, todos os cantos menos óbvios daquele corpo que, a escassos centímetros do seu, está já como que longe. Como que perdido.

Daquele lado do escuro da cama prevê com exactidão matemática o futuro: do fundo do tempo que está para chegar, na calada da noite, chegam homens para lhe explicar com detalhes pornográficos como usarão aquele corpo que nunca foi verdadeiramente seu.

E, naquele momento, não precisa de espelho para saber que, ao romper da aurora, acordará sozinho com o  olhar sanguinário de quem está irremediavelmente pronto para perder. Pronto para matar.

(...)

segunda feira, ao cair da solidão

(...)

Do lado de fora da janela pareciam apenas dois vultos perdidos num café qualquer. Mas lá dentro não. Ele, relaxado na cadeira, numa pose de aparente descontracção, tentava como de costume disfarçar a insegurança que o invade cada vez que vê o rosto dela assim, inteiro, ocupar por completo a sala com o entusiasmo de quem encerra a importância do destino do mundo nos assuntos mais triviais.

Para ele tinha sido sempre assim. Partilham a solidão sincronizada com chá ou café, em bares mais ou menos sofisticados, e deixam nesses instantes, o resto do mundo desacontecer. 
Param sempre tarde demais. Esperam sempre até depois do fim porque juntos aprenderam a desconstruir o tempo. E, quando o sorriso dela parte a galope ao sabor de um relato banal qualquer, ele faz um esforço ignóbil para perceber como é que o resto do mundo não entrava em combustão instantânea perante a alegria incendiária com que ela tentava (em vão) esconder o coração.

Ao chegar a casa, nada faz sentido: os copos, as paredes, o silêncio. Estuda no espaço vazio que acompanha a sua ausência os motivos, a arquitectura por detrás das duas meias luas que edificavam aquele sorriso com detalhes de paraíso. Mas cada vez percebe menos. Apenas a suspeita de que aqueles encontros não são mais que o destino final de duas fugas perpendiculares, destinadas a encontrar-se ali, sempre ali, no epicentro da solidão.

quarta-feira, dezembro 19, 2012

(ou o mapa de outono para o regresso à solidão)

A dança insegura dos teus cabelos nos meus dias
tem um aroma cor de amêndoa,
um sabor ignorado à alegria
que nenhum de nós ousa sequer sonhar.

Há algo no teu rosto
um qualquer esboço primitivo
uma sugestão das primeiras primaveras
de um tempo tão puro
que já ninguém sabe imaginar.

Mas o teu olhar tem um sabor de avelãs
e promessas de paraíso,
como se os anjos se tivessem finalmente cansado de cantar,
e tivessem adormecido definitivamente no teu rosto distraído,
espalhados no teu sorriso escondido,
destinado à sedução infinita dos teus braços ondulantes
ao som destas ruas que habitamos desencontrados,
destas ruas que percorremos destinados um ao outro
rumo à destruição voluntária da pouca humanidade que nos resta.

Talvez tudo não passe de um sonho,
em que alguém te semeou,
espalhando na minha paranóia um vestígio cruel de esperança
que me puxa inexoravelmente para ti
e que desenha no abismo do teu encontro
a promessa de um futuro que cheira a amêndoa
um futuro que o teu passo distraído irá
(de certeza)
evitar.


segunda-feira, dezembro 17, 2012

tocata e fuga em natal menor

Tomas-me como um comprimido contra a solidão. Temos  um plano, separados, simples demais para se  realizar. Os sonhos mutilados escorrem sangue e esperança: é natal, a hora perfeita para embrulhar com alegria esta vontade incontrolável de morrer. O mapa que nos levou tantas vezes até ao fim arde agora na memória seca dos teus cabelos, à espera dos meus dedos amputados de qualquer ilusão, esticados em gestos de carinho,  nesta fuga a dois contra a solidão.

quinta-feira, dezembro 06, 2012

ants marching

os teus pés calçados
escondidos entre botas e meias,
protegidos contra a solidão,
são capazes de poemas
como fotografias do teu rosto descalço
que escondes tão longe do chão.

vejo as multidões que marcham,
identifico todos os pés
as botas, os sapatos, os buracos,
mas só os teus explodem e explicam de uma vez por todas o porquê intermitente do apocalipse definitivo que cabe no fundo seco de uma lágrima - as noites seguem o seu percurso titânico e, na dança desesperada dos desconhecidos, que se espalham pelas noites a prostituir sorrisos plastificados, identifico com precisão milimétrica a tua ausência, o ritmo atonal de passos alheios incapazes de se sincronizar com os meus -
que procuram em vão
entre ruas, estátuas, ou bares
(longe de todos os olhares)
um passo silencioso
(quase discreto,
quase descalço,)
que possa de facto imitar o teu;
que possa por momentos fazer de conta
que o teu sorriso no fundo se esconde
apenas com medo de encontrar o meu.