sexta-feira, março 24, 2006

vou-te escreve este poema porque me obrigaste
sem querer
deste canto seco de solidão
nesta varanda sacudida pela saudade
pelas ruas sujas de chuva e homens
até à tua estrada inundada pela minha falta
curvando em espirais de água suja e gotas atiradas
sem pena, ao mundo, aguardando...

espero-te, quase quieto, quase calado
dedos deslizando para os versos que não quiseste
mas que forjaste pela demora
com que atinges a minha calma nervosa, tiritante
com medo de quebrar
parado, à espera de um ruído que se perdeu na tempestade
oh chuva que cais violenta
oh vento que tentas em vão abanar as vontades
oh tempo de pedra, que me atacas
oh noite sombria que esperas em meu nome
a chegada do dia.

segunda-feira, março 20, 2006

Saudades de não ter passado.

Acaba por ser comum a muitos a saudade da infância, quando sem sabermos porquê, nos dava tudo tanto prazer. Não são saudades de brincar na terra com os meus carrinhos que voavam sobre a pista por não saberem andar. Nem dos murros do meu primo por lhe ter ganho aos berlindes. É uma saudade mais profunda, é uma saudade séria e funda, não de brincar, uma saudade de sentir algo que custa a explicar, mas que se sente e nos força a sonhar com esse passado. Esse passado que insiste em fugir cada vez mais com o tempo, que insiste a aproximar-se cada vez mais da vontade. É, agora penso que sei, penso que descobri, saudades de não ter passado, saudades da inconsequência inconsciente do mais pequeno acto, de qualquer palavra, da liberdade da vontade, porque querer é poder, até deixar de o ser. São saudades de ter liberdade na consciência, essa liberdade que tanto proclamamos, e que defendemos com o passar da vida por sabermos que a liberdade em estado bruto, essa, fugiu-nos ao continuar a viver. São saudades, agora sei-o com certeza de ter pensado e dormido sobre o assunto por mais de uma semana, verdadeiras e racionais, saudades inteligíveis, até há pouco impossíveis de entender. Saudades de não ter passado.

sexta-feira, março 17, 2006

Cartas Rasgadas

Cortinas de fumo
sobem pelas escadas
das cinzas que foram
cartas rasgadas.

Na mansão dos sonhos
alimento o fardo
cinzenta e fria
Pablo e Leonardo.

Poeta sem folha
pintando a vazio
dormindo descalço
na pedra macia.

segunda-feira, março 13, 2006

Deixa-me dizer que te amo

Deixa-me dizer que te amo
uma vez mais
só mais uma vez
só mais esta vez
a última antes da próxima
como se fosse a primeira
como se fossem todas e uma só
só isto, estas letras
este amo-te que ergo como um estandarte
que lanço ao mundo como o hino de todos
o verbo que foi antes de tudo ser
a frase que começa pelo vim
o poema de um verso só...

Deste canto de madeira verdejante e cal imaculado
vou gritar uma vez mais ao abrir dos meus pulmões
vou cantar do fundo mais íntimo da minha caverna
ao mundo, segredando, a ti, a todos, a ti
só mais uma vez - sob a luz triste da noite
apenas esta vez - no frio que acolhe o nosso encontro
uma última, penúltima, primeira vez - e os anjos brilham sobre nós
sentido a imensidão do céu que nos rodeia - eu o sol, tu a lua
sabes, eu amo-te...

segunda-feira, março 06, 2006

As flores são eternas
as flores não sangram
as flores são belas
as flores não morrem.

É por isto
por seres flor
tulipa e cravo,
pétala e pólen,
por teres entranhado raízes
na terra fértil dos nossos corações
que viverás para sempre
que desabrocharás eternamente
no jardim das nossas memórias.

E veremos
em cada Primavera de lembrar
o teu rosto esculpido
de mármore como os grandes heróis,
o teu tronco enorme de nogueira
erguido no nosso jardim,
nesse pomar em flor a que chamam céu
florescendo,
brotando a cada segundo
sendo para sempre fruto,
para sempre flor,
sem fim nem tristeza.

Uma flor é sempre uma flor.
Deste mármore frio
desta tijoleira de descalço encarnado
desta brisa quieta de gelo
deste Inverno.
e todos eles, istos e aquilos
sou trazido pela noite
uma noite sem adjectivos
uma noite qualquer
sem verbos ou predicados
complementos ou qualquer outra manha.
É daqui e dali
e de qualquer outro lugar
que sou trazido
não sei se por mim
ou talvez sem mim.
sou trazido ou venho
a este poema que me espera
atrás de uma página perdida
de um pensamento com medo de me esquecer.

Visto de fatos de manteiga cobertos
torradas nuas roubadas à manhã
e então vejo duas pétalas púrpura
baloiçando inertes de uma jarra vazia.
Lá fora, a chuva irrita
a sua voz monocórdica
a sua humidade desgraçada
e frio, tanto frio
que não oiço, nem sinto,
no entanto é verdade.
E então lembro-me das putas.
Pobres putas, sem luar para aquecer
a alma, que os corpos serão sempre frios
mas corações vazios, esses ninguém os tem.
Sou um mestre quando toca a ter pena
sou uma imensa intempérie
de pensar e não agir
sou um indigno cárcere para pensamentos tão belos
ideias tão puras que faço calar.

Desiludido e refeito
descalço de mármores e intenções
trilho estas escadas trazido de novo
e entrego-me à pornografia
de um livro inerte
que se abre para me deixar entrar.