Não me culpem por ter chegado a Londres de pé atrás. Alugar um quarto a um tipo qualquer que tínhamos contactado por telefone, por 20£ por noite podia ser no mínimo suspeito. E como continuo a ensinar-me a confiar menos nos outros e mais em mim, estava silenciosamente alerta enquanto esperávamos Niles, o "senhorio". Pelo caminho a pronúncia pouco britânica já nos tinha garantido cinco minutos de conversa de surdos com um funcionário do metro.
Há um tipo alto a aproximar-se, de mão estendida, e um sorriso enorme a condizer. Ao seu lado, um pintas que podia ter saído de um qualquer bairro lisboeta algumas décadas atrás: cabelo platinado, ouro, camisa às flores - o set completo. Despede-se à pressa, atrapalhado e desaparece, deixando Niles entregue àquela que era aparentemente a sua actividade favorita: falar como um desalmado. Sobre a alegada falta de chuva em Londres, sobre os cuidados a ter para sobreviver à cidade, entrecortadas por dezenas de desculpas pela casa ser muito pouco parecida com o palácio de Buckingham. Aqui fica a descrição de Niles completa: grande, cabelo grisalho comprido atado num rabo de cavalo apressado e uns olhos cinzento-azuis abertos, enormes, mesmo abertos, como se tivessem que ver o mundo tudo antes que alguma coisa se passasse fora do seu alcance. Niles não era gago, mas quando não sabia o que dizer a seguir, repetia maquinalmente a última sílaba até se lembrar do que vinha seguir, ou de o inventar. Mais tarde íamos discutir que parte de Niles ser assim se devia à loucura ou aos copos que já devia ter bebido àquela hora. Eu encontrava-me firmemente do lado da loucura. Um louco gigante que nos alugou um quarto pelo preço da chuva - chuva essa que fez questão de cair abundantemente nos dias que se seguiriam como que para sublinhar a falta de senso de Niles quando nos dizia que em Londres praticamente nunca chovia. Notória quando nos explicava três vezes como funcionava a máquina de lavar roupa ou nos mostrava que, na opinião dele, a roupa saía da máquina tão pouco encharcada que às vezes a vestia imediatamente. Tinha também explicações sobre tudo, desde os computadores das bibliotecas públicas britânicas até aos tratados medievais assinados entre Portugal e Inglaterra. Niles tinha ainda duas toalhas de banho para nós. Devia ter por volta de 40 anos. Essa foi a primeira e última vez em que vi Niles.
Como deve ter ficado claro, fomos para Londres como turistas e acabamos por aterrar directamente num sketch real de uma britcom a valer. Londres dos londrinos, britânica de gema. A Londres dos turistas ficaria para o resto da semana.
Nota: A noite incluiu ainda um jantar num pub irlandês, brasileiras embriagadas, música ao vivo e a primeira viagem num double decker bus de borla.
[Sim, "There is a light that never goes out" fazia obviamente parte da banda sonora para toda a semana.]
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