quarta-feira, abril 19, 2006

Guardei-te numa caixinha de veludo vermelho que carrego ao peito a que chamam coração.

terça-feira, abril 11, 2006

Profecia do desinteresse

Não queremos nada
mesmo nada
além do nada
para não nem ninguém.

Eis o coro ao qual me junto
calado
inerte por alienação
por ser mais um grão
de pó na areia pesada
da pedra na parede, e na casa,
peças de vida, peças de nada.

Nada, eis ao que nos entregamos
eu, e os que não são comigo
que são imóveis por vontade própria
como eu, também, por vontades suas
quieto
soterrado por tantos parados
que não me posso levantar.



se tentar, tentarás também?
se não, tentarei também.
confrontando a tua inércia
com um cravo na mão.

quarta-feira, abril 05, 2006

Hino à Terra

Onde está o cheiro da terra
esse odor, essa terra
que falta às minhas narinas
dilatadas como as de um perdigueiro
sem perdiz, sem bosque
sem vida para viver
sem vida para caçar
sem vida por matar?

Onde param os carvalhos
as oliveiras e os eucaliptos perfumados?
Onde está o sabor verde da paisagem,
o mugir triste das nossas vacas manchadas
como zebras de um hemisfério trocado,
o cantar do primeiro galo acordado pela aurora
o ladrar ameaçador dos cães soltos na serra
protegendo o rebanho no pasto espalhado
pelas montanhas, por essas escadarias
de comer e de passear, de ir e voltar?

Quando foi quer perdemos isto, meu Deus
meus amigos, quando?
Onde pairava o nosso olhar distraído
quando nos roubaram os rios cristalinos
e no seu lugar puseram correntes de lava
lava sujo como lodo,
lodo imundo como sangue?

Para onde meus caros, levaram
os nossos porcos, de sujidade deliciosos?
E de onde vêm afinal estes leões de metal
de rugido côncavo e gutural
de bafo negro, porco e quente?

Raios! Quando foi afinal que trocamos
os nossos campos de trigo à desfolhada,
os vinhos prontos a ser podados,
o cheiro da uva sob pés esmagada,
por perfumes de ervas plastificadas
por montanhas de cimento acimentadas
cinzento, frio, frio e pardo,
por corpos vazios de rostos uniformes
por palavras despejadas, por relações forçadas?

Para onde, por favor, onde
puseram a frescura verdejante que nos fazia sonhar
em que víamos palácios magnânimos nas colinas
e no horizonte um amanhã por desenhar?
Ajudem-me, ajudem-nos, pela vossa saúde, a encontrar
o mundo perdido que por aí anda, perdido
e nós perdidos nas ruelas, a sangrar...

Vamos juntar-nos irmãos, camaradas
e iniciar a derradeira jornada
juntem-se polícias, pedintes, estudantes
pedreiros, médicos, vendedores ambulantes.
Erga-se a criança no colo, e o avô nos ombros
e partamos
como nos tempos antigos
rumando para um mundo novo
o nosso velho mundo de lama
de relva, de chuva
de éguas parindo em desespero
de coelhos fornicando a voar
de touros morrendo moribundos
de rouxinóis cantando na rama
de cucos desafiando pela tarde
de flores no caminho que pisamos
de terra fresca sob os pés descalços,
pela chuva inclemente, pela humidade de prata,
pelas doenças incuráveis, pela próxima desgraça,
pelas capelas semeadas no meio do monte
pelas fontes escondidas na clareira secreta,
para recuperar o que já foi e queremos de novo
para ver jornaleiras cantando de cântaro à cabeça
sob o sol resplandescente do meio dia
para ouvir peixeiras anunciada em ribombos
o peixe ordinário da sua vida
para encontrar na esquina os comerciantes
parlamentando sobre o tempo e a vida
para sentir de novo irmãos, família, humanidade
o mundo nesse vestido de verde e castanho
mais brilhantes que ouro e prata,
para viver neste mundo que pode ser nosso
para abraçar de novo a terra inteira.
eu sofro mais por ser poeta
porque sinto mais fundo
mais dentro, mais longe...
porque as lágrimas das faces comuns
me escorrem na alma de vidro
deslizando o seu suave recorte pelo gelo
das minhas entranhas cansadas,
do meu ventre aberto à dor do mundo
que o viu nascer
que o viu viver
que o viu sofrer
por ser ventre de poeta
e ser poeta é ser sofrer...