quarta-feira, junho 24, 2009

ressaca para uma autobiografia

Permaneço deitado, ignoro o dia, não me mexo, recuso-me a pensar. Durmo como se nunca mais acordasse, e ao acordar já é novamente noite. Como abundantemente, fumo muitos cigarros e bebo pelo menos meio litro de café.
Mas, apesar de tudo, e com a prática de muitas ressacas, nem sempre consigo evitar a dor provocada por essa mesma ressaca- a ressaca mental.
Sempre bebi em quantidade, violentamente, para perder a noção de mundo, e do mundo. Nunca bebi por paixão, nem por desgosto de amor, não, nunca bebi dramaticamente. E no dia seguinte a ter bebido muito, é como se os sentidos e a memória tivessem sido passados a esfregona e lixívia.
E dos sentidos surgem então sensações estranhas. Por exemplo, um órgão qualquer desata a arder, ou perco a visão- cego por instantes, e sou obrigado a tactear-me para me certificar de que existo.
Nada disto é agradável ou desagradável, é um outro estado de singular lucidez que pode prolongar-se horas a fio, entre uma espécie de escuridão primordial e a fulguração dum tempo ainda por vir, ou já eterno.
Fico assim, perdido no fundo de mim mesmo, sem nome, sem olhar para o que me rodeia, sem corpo que me transporte, sem pensamentos.
Quanto à memória, é terrível. Umas vezes vai buscar imagens distantes de acontecimentos que, em geral, ainda virão a suceder. Outras, pura e simplesmente não há memória de nada. Um pouco como se eu começasse a ser a cada fracção de segundo, e levo um tempo infinito, desumano, para erguer de novo, peça a peça, o que sou.
A embriaguez é um momento de vida incendiada, ou suspensa, e a ressaca um tempo de lenta e demorada reconciliação com o mundo, e comigo mesmo.
Mas, um dia, tenho a certeza, não terei forças para me reconciliar com o mundo, nem vontade de regressar de onde estiver. Continuarei a beber ininterruptamente e não haverá mais ressaca, nem dor.
Seduz-me a ideia de vir a morar num corpo que já não sente, etílico talvez, transparente, e com uma leveza de cinzas

O medo, Al Berto

terça-feira, junho 16, 2009

The Law for the Wolves

"Now this is the law of the jungle, as old and as true as the sky,
And the wolf that shall keep it may prosper, but the wolf that shall
[break it must die.
As the creeper that girdles the tree trunk, the law runneth forward
[and back;
For the strength of the pack is the wolf, and the strength of the wolf is
[the pack.

The second jungle book, Rudyard Kipling

sexta-feira, junho 05, 2009

Mergulho da Passagem Área

Sinto o frémito da cidade atravessada no ferro.
O chão sobressaltado tenta assustar os meus pés, deliciados com o pânico descalço dos carros que fogem em pontas às horas imperdoáveis. A vibração do ar em histeria percorre a minha pele sôfrega, extasiada. deixo-me preparado para voar. sorrio, num último relance, antes de partir em arco sobre o asfalto submerso.

terça-feira, junho 02, 2009

Schmidt (Na sua morte)

"E ele morria em seu noturno aquário, esmagado pelo teto do infinito, náufrago de si mesmo - um poeta como quem se afoga.

(...)

No fundo devo-lhe muito. Aliás, por falar em dívida, fiquei lhe devendo cinco contos, emprestados há muitos, muitos anos.
Eu lhe digo o que farei, meu caro Schmidt. Hoje à noite, quando sair para fazer meu show, pegarei numa nota de CR$ 5.000, bem amassada numa bolinha, e a jogarei para cima, com toda a força que tiver. Se você ainda estiver levitando por aí e conseguir pegá-la, muito bem. Se não, tudo o que eu desejo é que caia perto de alguém mais pobre do que eu."

Vinicius de Moraes, Para uma menina com uma flor