sexta-feira, abril 27, 2007

A casa parece cada vez mais escura. Não entendia porquê. Quantas mais luzes, maiores as sombras. E só via mãos. Será que se tinha despedido dele? Decididamente murmurara algo a esse respeito, mas tinha uma vaga recordação de ouvir algo como um "nem pensar" alegre, mas era complicado ouvir com duas mãos assim, enroladas no pescoço como o beijo de uma serpente, a tapar-lhe os ouvidos, e a boca, e o nariz, a amarrotar-lhe a solidão no cesto dos papéis quase esquecido. Mas também, porque raio o tinha ele convidado? Cinquenta anos não são muitos mais que quarenta e nove, e não se lembrava de qualquer outro festejo que fosse desde que o conhecera há tantos anos atrás quando apenas sonhavam baixinho para ninguém ouvir. Nessa altura tudo começava a correr bem, e sabiam que o futuro estava para chegar.
Mas não tinha chegado para os dois. Quando primeiro o pé lhe deixou de obedecer riram-se do seu jeito desajeitado de tentar jogar à bola. Depois começou a coxear, e o médico disse que eram os ossos. E cada vez se mexia menos, o pé. E ele a gritar-lhe que carregasse mais no fim do adagio. E nada. O pé parado a olhar para ele com um ar interrogativo, e ele a olhar para o pé, como o médico olha sem perceber o discurso triste de um louco.
Bolas.
E depois foi o dedo. Primeiro só um. Na mão esquerda. A ficar lento demais para qualquer escala aceitável. E o sonho a gritar cada vez mais que estava a morrer. Mas ele já sabia. E abandonou-o no altar antes de o funeral começar.
Tudo mudou, e a paixão viajou para os intestinos, onde se mostrava em cólicas e náuseas impossíveis de suportar. Até o final glorioso da nona agora lhe parecia um coro de velhas desajeitadas na aldeia a gemer um hino ao senhor que não queria saber delas para nada, e que ditava às lages o trágico destino de as suportar repetidamente até se desmoronarem num suspiro de desespero. Como era possível, aquela força, aquela vida, o grande acto de rebelião do monstro, a única alegria alguma vez realmente cantada, lhe angustiar tanto os sentidos? A desolação tinha sido há muito acossada do seu espírito, e todas aquelas recordações agora estavam amontoadas num compartimento particularmente distante das suas memórias.
Mas nunca lhe conseguira dizer não. Ao que parece os cinquenta anos eram muito mais que os quarenta e nove afinal. Talvez ele fosse morrer no próximo ano e não lho quisesse dizer. Muito bem, mesmo assim poderia ter-se lembrado da angústia que lhe provocaria voltar a ouvi-la. Mas , num acto de coragem e desafio que não se sabia capaz - ou talvez, quem sabe,
(não, não poderia ser, ) saudade?-foi.
Todos os pretextos foram refutados tão efusivamente que acabou por não ter de qualquer modo outra alternativa. E foi tudo o que esperava e muito mais. Uma tortura, um deslumbramento, uma irritação imensurável perante tantos sons que tentara expulsar de si para sempre. Mas tudo era difuso agora, e todas aquelas sensações se dissiparam quando as viu.
Ali, ao seu lado, alegres e saltitantes ao ritmo do molto vivace do segundo andamento, como se sempre tivessem sido saudáveis. Sim. As suas mãos. As mãos que perderam todo o seu respeito há tanto tempo atrás, ali, num corpo estranho, vivas. Mas o corpo não era seu. Tentou olhá-lo. Não conseguiu. A sua mente sentia-se perturbada, sentia tonturas, sabia que a música prosseguia apenas pelas vibrações involuntárias do seu corpo ainda treinado, mas tudo o resto eram dedos, tudo o resto eram unhas que ele julgara para sempre enterradas na paralisia selvagem dos seus ossos. Mas estavam ali, e a atracção era tão forte que se sentia perder os sentidos, e o transe de todas as recordações enterradas naquela parte distante foram vomitadas por uma porta escancarada por aquelas mãos suas que já não eram. Deixou-se ficar na sala após o final, ainda com os olhos semicerradas, com medo de as voltar a ver, sabendo que o pavor que o possuíra o destruiria em poucos segundas se as voltasse a vislumbrar. Depois, segundo julga lembrar-se, arrastaram-no até à casa dele, onde a festa prosseguia. Havia sido um sucesso, alguém lhe declarou alegremente, mas para ele era apenas um murmúrio, e juntando todas as forças que ainda lhe sobravam, arrastou-se para casa depois de um adeus recusado.
Mas a luz só dava sombras. E aquelas mãos não lhe saíram mais do coração.